Uma poética da circularidade do tempo e da existência

Extasiado, estático e inerte fiquei

Já não estava mais comigo o menino

E continuei seguindo meu caminho…

 

Apressando o passo, atirando pedras

Falando alto, abolindo regras.

 

Vital Carvalho

 

“O Breve Verbo”, de Auricélio Soares Fernandes, sob pseudônimo de Aurífero, é uma dessas obras literárias que, dadas as devidas proporções, já nasce um clássico. E não afirmo isto por mera leitura apaixonada, ou encantamento imediato com o trato estético e poético da obra. Ítalo Calvino, em Por que ler os clássicos? (trad. Nilson Moulin. – 1.ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2007), discute que um clássico é uma obra que sempre tem algo a transmitir, mesmo que não tenha finalizado sua mensagem. Essas obras são aquelas que, embora pensemos conhecer por meio de comentários, ao serem lidas, revelam-se sempre novas, surpreendentes e originais. Além disso, um clássico continua a ser uma referência, mesmo em tempos em que as novidades parecem dominar (e parece que Carrowls não se preocupa em se contaminar com pretensas “novidades”). Sim, “O Breve Verbo” já nasce com essa potência de uma poesia que reverbera pela sua capacidade de transcender o tempo e o espaço.

Carrowls, com uma precisão cirúrgica, coloca em cada palavra um mundo de significados, revelando, em versos e estrofes curtas (em sua maioria), a profundidade da experiência humana. Se o título remete à brevidade, o impacto da obra, no entanto, está longe de ser efêmero. Ao contrário, suas páginas são preenchidas por uma reflexão intensa sobre os grandes temas da existência: vida, morte, amor, arte e o próprio labor do poeta. É uma poesia que faz eco às grandes vozes da tradição, ao mesmo tempo em que encontra sua própria voz no contexto contemporâneo.

Essa cuidadosa miscelânea, convida o leitor a adentrar em uma jornada introspectiva e crítica. Chamo a atenção para um dos aspectos mais marcantes da obra de Carrowls: sua postura diante da poesia contemporânea. Em tempos de excessivo experimentalismo, quando muitas vezes a forma parece sobrepor-se ao conteúdo, Carrowls apresenta uma poética que resgata a essência clássica e romântica, sem deixar de lado a originalidade e a inovação. Ele desafia o leitor a se reconectar com a universalidade das emoções e experiências humanas.

Sua poética nos conduz por uma obra que, embora multifacetada, é coesa em sua intenção. “O Breve Verbo” revela, a cada página, uma nova camada de significados, convidando o leitor a percorrer os meandros da mente e das experiências sinestésicas. E, talvez, uma das grandes virtudes do poeta seja exatamente essa: sua habilidade de transformar o particular em universal, de fazer com que cada verso reverbere além do eu-lírico, tocando o âmago existencial de quem lê.

Uma das questões mais pungentes da poesia de Carrowls é a relação entre o tempo e a existência. Em poemas como “Palíndromos”, o autor nos confronta com a ideia de que a vida e a poesia são, em última instância, experiências circulares. A estrutura simétrica dos palíndromos, com sua capacidade de ser lido em ambas as direções, não é apenas um recurso técnico (Sou breve como o verbo. / De trás para frente, / Igual ao diferente. / De frente para trás, / Revelo mais do que sou capaz.); é uma metáfora poderosa para a repetição e renovação inerentes à experiência humana. Na visão de Carrowls, a vida – assim como o verso – nunca se esgota em uma única interpretação. Cada leitura, cada vivência, cada reflexão acrescenta novas camadas de entendimento, como se estivéssemos eternamente revisitando os mesmos momentos, porém sempre de uma nova perspectiva.

Essa circularidade também se reflete na relação entre o poeta e o leitor. A cada releitura de um poema, um novo sentido emerge, assim como na vida, onde as experiências se repetem, mas nunca da mesma forma. Essa reflexão sobre o tempo, aliada ao caráter introspectivo da obra, coloca Carrowls na linhagem dos escritores que evoca em sua produção, de Emily Dickinson a Oscar Wilde. Em uma ode à natureza fragmentária e mutável da vida em contraposição ao aniquilamento do corpo através da morte.

Outro aspecto interessante de “O Breve Verbo” é a constante reflexão sobre o papel do artista na criação de sua obra. Em “Byronesque”, Carrowls presta uma homenagem ao poeta romântico Lord Byron, mas a referência não é meramente estilística. O poema é, antes de tudo, uma provocação sobre o dilema enfrentado por todos os artistas: a tensão entre vida e arte, entre o desejo de criar algo eterno e a consciência de que a própria vida é fugaz: De tanto ler Lord Byron / Confundiu a Vida com a Arte. Byron, que viveu intensamente e morreu jovem, encarna essa dualidade, e Carrowls, ao evocá-lo, reflete sobre como o artista pode, por meio de sua obra, transcender a brevidade da vida.

Aqui, Carrowls toca em um dos eixos da estética romântica: a ideia de que a arte é um meio de perpetuar a existência. Em meio à efemeridade da vida, o poeta encontra na criação literária uma forma de alcançar a imortalidade. A arte, para Carrowls, é a ponte entre o finito e o eterno, uma forma de preservar o que é belo e verdadeiro, mesmo diante da inevitabilidade do fim iminente.

Já em “Corpoema”, encontramos uma das mais belas metáforas da obra de Carrowls: a comparação do corpo humano com o poema. Assim como o corpo, o poema não tem um fim definitivo; ele se prolonga, se expande, ecoa além de suas fronteiras. Aqui, o jogo semântico com os sinais de pontuação é um reflexo dessa ideia: a vida, assim como a poesia, é um processo contínuo, cheio de vírgulas, reticências e pontos finais. O corpo, com seus desejos, emoções e experiências, é o meio através do qual vivemos e sentimos: Tateio entre vírgulas, / Sem pontos finais sinto o cheiro… / Reticências, contemplo primeiro / Tua mais perfeita Magnificência. Para Carrowls, essas experiências são infinitas em sua essência, mesmo que o corpo seja temporário.

Essa abordagem revela uma visão quase espiritual do corpo e da poesia, onde ambos se entrelaçam em uma dança eterna. O corpo, assim como o poema, é uma criação em constante transformação, e é nessa transformação que reside sua beleza. Carrowls nos convida a ver a vida não como uma série de eventos desconectados, mas como uma obra de arte em si mesma, onde cada experiência, por mais breve que seja, contribui para a totalidade da existência, o que surge como eco sibilante em “Corpoema 2”.

Em “O Pó”, Carrowls explora a relação entre criação e destruição, vida e morte. A metáfora do pó, que tanto origina quanto encerra a existência, é uma imagem poderosa da ciclicidade da vida. Carrowls nos lembra de que, embora a vida seja breve, ela não é o fim. O pó, que pode parecer um símbolo de destruição, é, na verdade, o início de um novo ciclo. Assim como a vida se desfaz em pó, o pó pode, por sua vez, dar origem a algo novo. E, assim como o ciclo da vida, talvez “O Pó” dialogue com os poemas de homenagem aos que já partiram física ou simbolicamente, mas se materializam presentes na poeira da memória, como em “À Marta” e “A D—–”, ou nos poemas em que a metáfora do pó (seja direta ou implícita) encapsula a passagem do tempo, a exemplo de “Ampulheta” e “Quatro de Dezembro”.

O poeta, consciente de sua própria mortalidade, encontra na palavra escrita uma forma de perpetuar a si mesmo, de resistir ao esquecimento. “O Breve Verbo” é, em muitos aspectos, uma incursão sobre essa busca pela imortalidade através da arte, talvez como em O Retrato de Dorian Gray, visto que é íntima a relação do poeta com a obra Oscar Wilde, que surge acompanhado de inúmeras referências no poema “À Vitória”, ou como essência da própria genealogia do poeta, em “Born to be Wilde”. E, assim como o pó que se espalha e se transforma, a palavra poética se difunde pelo tempo e se desdobra em novas criações, como na máxima bíblica: do pó viestes, ao pó voltarás.

Emily Dickinson, uma das figuras mais influentes da poesia anglo-saxônica, se faz presente em “O Breve Verbo” de forma quase palpável. O poema “À Emily Dickinson” é uma homenagem à sua figura e à sua obra, mas, mais do que isso, é uma ponderação sobre a solidão, a introspecção e a transcendência poética: Lá onde a eterna Morada / Há de receber meu Eu – Profano. / Ao Passado que Cessa sem parar. Dickinson, que viveu grande parte de sua vida em reclusão, encontrou na poesia uma forma de eternizar-se, e Carrowls traça caminho semelhante, como no poema “Blind(agem)”, em que o eu-lírico crava: Blindo-me para evitar a Dor.

A solidão, tema recorrente na obra de Dickinson, é tratada por Carrowls como uma espécie de refúgio, o que também é desenhado em “O Vazio e o Interior: um diálogo”, em que a poesia se transfigura em diálogo íntimo, em que o eu-poético conversa consigo mesmo, mas também com o leitor, que, por sua vez, se encontra na palavra do outro, uma experiência filosófica vicária.

O título “O Breve Verbo” encapsula, de forma magistral, a filosofia poética de Ragdeil Carrowls. O verbo, aqui, é a palavra criadora, aquela que dá forma ao mundo e às emoções. E, embora a vida seja breve, o verbo – a palavra – é eterno. Carrowls nos lembra de que, mesmo quando o corpo se desfaz, a palavra permanece. Através da poesia, o poeta alcança uma espécie de imortalidade, onde cada verso, por mais breve que seja, ressoa infinitamente, como “Rememórias” que ainda florescem […] o ano inteiro.

Em “O Breve Verbo”, Ragdeil Carrowls cria uma obra que é, ao mesmo tempo, uma ode à vida e uma meditação sobre sua fragilidade, sua brevidade. É uma obra que nos convida a refletir sobre sua própria existência, enquanto nos maravilhamos com a beleza e a profundidade da criação poética. E, ao final dessa jornada, fica claro que, embora o verbo possa ser breve, seu impacto é eterno. A palavra, assim como a vida, transcende o tempo, e é através dela que encontramos, como bem desenha Vital Carvalho, “o trigo que nos dá o pão, a vida e a ETERNIDADE”.

Uma poesia que voa, se perde da nossa visão e ganha o céu, e ao léu, encontra o outro em si.

 

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Egberto Vital

Banabuyé, 20 de outubro de 2024

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