Amapola e Varsóvia, duas jovens de 25 anos, sem saber como e por que, acordam, pouco antes da Grande Gripe da Coroa de Espinhos, peladas em uma praia de Anhangás, antiga vila de pescadores que se tornou destino turístico. Inspirado na Vila de Jericoacoara, Ceará, o livro apresenta um mundo absurdo, onde nem tudo o que parece, é.
Em síntese, esse é o enredo básico do livro “Histórias encantadas entre cordilheiras de areia” (Arribaçã Editora), de Cássia Fernandes, obra escolhida como melhor Romance pelo tradicional Prêmio Cruz e Sousa, de Santa Catarina. Desde a primeira leitura, quando ainda não tinha sido transformada em livro, disse que a obra tinha tudo para ganhar prêmio: bem escrita, leveza, personagens bem definidos e carismáticos e um enredo acima de tudo fantástico. Aliás, esse último item é que poderia atrapalhar o caminho para prêmios literários. É que no geral a literatura contemporânea tem sido construída mais baseada em fatos reais. O livro de Cássia, ao contrário, é baseado em fatos irreais.
Gosto dessa definição que o Edival Lourenço faz da obra: “Histórias encantadas entre cordilheiras de areia, de Cássia Fernandes, é um romance de realismo fantástico, só que num tom um tanto sutil, mais próximo de Murilo Rubião e José J. Veiga, do que de Jorge Luís Borges, Bioy Casares ou Gabriel García Márquez. No entanto, pelos simples aspectos de que as protagonistas Amapola e Varsória, que estão mortas, mas levam vida mundana de entidades vivas, o romance se aproxima um pouco de Juan Rulfo, em Pedro Páramo, ou de Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas”.
Ousaria acrescentar, ainda, a presença lúdica de Jorge Amado também, de seus personagens, principalmente. Em alguns momentos do romance de Cássia Fernandes, é como se estivéssemos sentados num barzinho, apreciando as dunas de Mangue Seco e contando histórias do arco da velha. Só que em Jorge Amado os personagens são reais, mas não existem. Em Cássia, eles são irreais e existem. Eu mesmo me deparei com muitos deles nas madrugadas da orla de João Pessoa em meados dos anos 1990, isso quando nem existia a Grande Gripe da Coroa de Espinhos. Mas Amapola e Varsóvia já existiam, acreditem!
Ainda sobre a obra, cabe um registro interessante de Anderson Alcântara: “A delícia maior do livro, confesso, é o voyeurismo. A gente segue Amapola e Varsóvia por todos os cantos. Seus primeiros momentos na eternidade são acompanhados por nós, leitores, com a devoção de quem, de repente, se vê com os poderes da invisibilidade. Elas espiam as muitas formas de vida. E de morte, vai saber. O que elas não desconfiam é que também são observadas, são seguidas de muito perto. E juntos formamos um séquito sedento por devorar cada nova sensação, cada arremedo do que talvez seja a realidade. A realidade com alguma amplificação.”
Para encerrar, deixo um trecho do início do livro:
“Nesse dia tomaram a decisão de andar a maior parte do tempo vestidas e se iniciou o fenômeno do desaparecimento e reaparecimento frequente de peças de roupa que tanta confusão provocou no povoado. Já haviam passado por situações constrangedoras, mas muito pontuais, e no princípio até se divertiram com os pequenos incidentes desencadeados pela nudez súbita, com a estupefação dos pescadores que julgaram ver sereias bronzeando-se sobre as pedras da Praia da Malhada, e com o desespero de um turista que tentou a todo custo fotografá-las enquanto assistiam ao crepúsculo na Duna do Pôr-do-Sol, um dos principais pontos turísticos de Anhangás. Se ele teve êxito em seu registro, elas não souberam, para alívio de Amapola e descontentamento de Varsóvia. Surpreendidas nuas, do alto da duna mergulharam no mar.”
Em tempo: a obra pode ser adquirida no site da Arribaçã: https://arribaca-editora.lojaintegrada.com.br/historias-encantadas-entre-cordilheiras-de-areia