Seria ocioso, por redundante, falar da magia poética de Jorge Elias Neto, mesmo porque o prefácio, que é algo que se escreve depois do livro pronto, também é algo que só o autor do livro prefaciado, o revisor e o autor do prefácio conseguem ler: o primeiro, para saber a opinião de seu primeiro leitor; o segundo, para ter a certeza de que o editor não o tornou réu de algum deslize na sintaxe da língua; o terceiro para assegurar-se da responsabilidade de apresentar o livro ao público. Pra mim, contudo escrever este prefácio representou o renovado prazer de voltar a ler o livro de cujos originais fui revisor. Na verdade, não se trata de um prefácio, mas de uma apresentação, à vol d’oiseau, dos livros que compõem esta antologia do poeta. Aqui colocamos em negrito o título do livro e, em itálico, o título dos poemas, reservando as aspas apenas para as citações.
O primeiro livro que abre esta coletânea, Verdes versos (2007) que prefaciei, já faz prever a beleza do que vem depois, em verdadeiros aforismos em que o pensamento lógico se funde com a verdadeira poesia: “Roga o olhar do homem em lágrimas / o fim da poesia” (Por que as mariposas buscam insones). O homem é “um mosaico de fluidos” (Kioto) “para quem o importante é o prazer de esperar” (Fogo baixo). Afinal, não interrompamos “o cotidiano das serpentes,/ elas não buscam nos homens o seu veneno” (Reflexão). Mas o mais notável nestes Verdes versos é a imagem surrealista da criança que diz ao pai: “Pai, meus olhos estão encharcados de sono” (Cachos dourados da borboleta) O autor afirma que “Certas bocas não vestem bem as palavras” (Ofertório), porque confessa: “Sou poeta: / aprendi cedo/ a mordiscar os lábios de Deus.”(Duo)
Rascunhos do absurdo (2010) é um livro de introspecção, em que o poeta se revela “um sapo de língua comprida catando moscas” (Régua quebrada), , transformando “sapo em borboleta”. Para o poeta, “as águas só se abrem para as Escrituras” (Ventre vazio), por isso ele sabe “perfeitamente as dúvidas que pretende ter” (Big bang). Momentos líricos surrealistas também aqui aparecem: “Meu pai vestia uma pele / de sonhos amarrotados” (Polos) e “violei o túmulo de minha mãe antes de sua morte” (A dor do corte). O poeta “sabe as dúvidas que pretende ter” (Só sei que vou te amar). Afinal, a poesia se joga nos trilhos para salvar a flor” (Régua Quebrada).
No blog Estalo da palavra, ele aproveita para expor seus aforismos: “Deve-se então ver as nuvens / para entender os dias (Claro enigma) A estupidez não é mais um traço: / é um demônio que se agiganta”. Nesse blog, o poema mais impressionante e pungente é Cristo de pão: o pai, à mesa, faz um Cristo com miolo de pão e, ao dá-lo ao filho, o crucifixo se parte. E o poeta conclui, desarvorado: “Foi duro para mim / ver Deus quebrar-se em minhas mãos.” “Enquanto tivermos pulmões para separar as pétalas / exerceremos o ofício temerário de celebrar a vida.” (No entorno).
Em Os ossos da baleia (2011), há predominância de poemas líricos, como, por exemplo, Rosa dos ventos, Sua sombra que passa, Penhor, Maria (um dos poemas mais longos). Destaco os versos de Politeísmo: “Antes que o Céu /se incumbisse / do sumiço das estrelas / o menino desenhou / um Sol para cada País.” Ou estes, de Nuage: “Jamais percebi o tamanho / de tua sombra. / Mas, em certos dias, /como hoje,/ ela preenche / a imensidão / do horizonte.” Também aqui há aforismos em meio às belezas de sua lira: “A eternidade é uma metáfora que já não me cabe.” (70 metros).
Em Os ossos da baleia (2012), há predominância de poemas reflexivos, em que o pensamento lógico se mescla com a sensibilidade do poeta, de maneira a fazer o leitor se debruçar sobre o sentido dos versos. Todos os poemas aqui são numerados com algarismos romanos, como se fossem títulos, dando a impressão de que não são poemas desligados uns dos outros, mas unidos entre si, formando um todo semanticamente homogêneo. Eis alguns exemplos aleatoriamente escolhidos: “Onde não estive/ custa-me adivinhar trevas” (X); “É necessário não prescindir da loucura, / Ser, quem sabe,/ um contrapeso à tensão da corda” (XI); “Para tudo existe um peso,/ uma medida/ e uma visão retorcida (XVII); “Meu punhal tem duas faces: / a que brota/ e a que geme” (XIX – poema que serviu de epígrafe para o livro Breviário dos olhos, de 2014, e que aparece no início do poema Manual para um repentista das facas, do livro Manual para estilhar vidraças) e, para concluir, só para não cansar o leitor: “Não se ruminam sonhos. / Eles se costuram / e crescem” (XXII).
Glacial – 2014 – do(s) eu(s) ao sujeito. Aqui o poeta é mais pessimista, talvez mais hermético, e nos obriga a refletir a cada palavra para o entendimento do todo. Vale citar alguns versos: “O céu conspira / dentro de mim,/ ponto/ sujo no útero/ da neve” (Insignificância); “E a verdade/ já foi grunhido,/ pelo primeiro homem” (Teia dos homens); “A maior morte,/ em vida,/ é a impossibilidade” ( versos que soam como epifonema no poema Do que prende os pés dos sonhos); “Eis a última pele – a palavra – / que se desgarra inapta / a prosseguir/afirmando/o esplendor da verdade” (Um resto de Sol no desalento); “Os livros são meu celeiro / de devaneios (…) Os livros/ me permitem/ compartilhar silêncios…” ( Cansaço); “Desvios / só interessam aos apressados;/ e já não se tem mais pressa (Clandestino); “O nada/ é um cansaço/ que dá sono” (Tédio) e, finalmente: “Cada um é igual / à quinta / parte/ do que lhe resta / como consolo. (A simetria do caos).
Breve dicionário poético do boxe (2013) é basicamente sobre Éder Jofre, “artista do palco e do ringue”, com referências biográficas a Kid Jofre, e sobre a metalinguagem do pugilismo., poeticamente definida pelo poeta. O Clinch é assim expresso: ‘Não se arme, / passei para te dar / um abraço.” Em Rounds, a atestação “Há que ferir-se/ na batalha, / sem dúvida.// Árduo / o caminho até a vitória”.
Breviário dos olhos (2014), obra dividida em duas partes: “A que brota” e “a que geme”, versos que constam do livro Os Ossos da Baleia (2012). Ambas as partes se constituem muitas vezes de aforismos retirados de poemas anteriores. Vejamos algo da primeira parte (A que brota): “Se disser tudo,/ restará a última mentira.” “Por mais que insista,/ os dias são mais irônicos que as palavras.” “A maior morte,/ em vida/ é a impossibilidade.” “Na perspectiva da ponte,/ o pássaro solitário nunca volta.” “Cada manhã traz consigo uma nova geografia.” “… mesmo quebrada a cruz,/ sempre resta um pouco/ de fé em nossas mãos.” Alguns aforismos aparecem antes em outros poemas: “O nada / é um cansaço/ que dá sono.” “Não se ruminam os sonhos. Eles se costuram/ e crescem.” “Não interrompam o cotidiano das serpentes;// elas não buscam no homem seu veneno.” A segunda parte (a que geme) é mais voltada para a palavra e para o poema em si: “A minha imortalidade/ se encerrará com a minha morte.” “Deixarei para as ondas decidirem/ sobre a imortalidade / de meu nome na areia.”
O livro Cabotagem (2016) é sobre topônimos ou locais de “habitués” de Vitória que servem de inspiração ao poeta: os muros do Sacré-Coeur, o Convento da Penha, a Capela do Carmo, o Clube (Jairo Maia) da Esquina, o Blitzbar, o Túmulo (sobre os grafiteiros em “cabeças de penico”), o Horto, os cines Juparanã, São Luís e Paz; a Avenida República, o Parque Moscoso, o Aterro do Suá, as Cinco Pontes, o Manguezal,… E a menininha Araceli, de apenas 8 ou 9 anos, assassinada e jogada morta num matagal.
Em O ornitorrinco (2018), o poeta se debruça sobre si mesmo, sobre a própria poesia, como no poema que dá nome ao livro: “Fui obsceno / cosseno e outras peripécias” e conclui: “Fui o poeta.” No poema Superornitorrinco, ele reitera: “eu, ornitorrinco, / ridículo e ébrio”, e conclui: “e percebi o Sol/ que irrigava a Terra/ e o verde/ que me brotava / entre os dedos.” Como poeta, ele se interroga: “Cabe desmentir a necessidade do imenso / e a aspiração do infinito?” E roga à poesia e à palavra: “Poesia, /transforme em ruído/ o som da espera. // Palavra/ seja o orvalho/ de minha passagem.” Nesse livro ele também aborda de maneira crítica a religião, como no poema Catedral: “crucifixos/hóstias/dízimos/pia abismal/ e a imagem do Cristo / que nada tem a ver com isso.”
Sonetos em crise – Em O ornitorrinco, Jorge Elias diz, no poema Subversivo: “O caminho do poeta / passa pela velha rima.” Aqui, no entanto, a rima é basicamente toante, porque a preocupação maior é a introspecção. O poeta se debruça sobre si mesmo e sua arte, como em O diálogo entre poetas, um dos quais é Dante. E diz, em A singular confissão inútil: “não tem pudor, desengana o segredo, /ignora a espessura do silêncio / e não se importa em sorver o degredo.” Mas há mais confissões singulares como a do poema Folhas secas do outono: “sou um ser do outono, de um crepúsculo, / que faz brilhar o olhar dos loucos.” E como a do Arrimo da Pedra Branca: “Sou ser prosaico, massa, tolerante,/que ao rés do chão vou farejando a vida.” Sonetos em crise é um mergulho que o poeta dá em si mesmo..No último livro desta antologia há o soneto chamado O sono dos invisíveis, que poderia figurar no final destes Sonetos em crise.)
A arte do ZERO é mais um livro pessimista em que predominam palavras como túmulo, morte, abismo, desespero, entre outras de campos semânticos denunciadores do nada. Aqui também a confissão do poeta em Ser ZERO: “Sei que sou do outono,/tempo dos raios oblíquos / de um crepúsculo que faz crepitar os olhos dos loucos/ e germinar a melancolia dos suicidas.” Afinal, o zero é “a essência do nada” (poema ZERO ovo). Aqui também há a preocupação religiosa, como no poema O ZERO como véu: “Sinal da Cruz/ saliva lúbrica,/caninos,/hóstia,/e a doce culpa/ de quebrar as Tábuas do Profeta.” A arte do ZERO é um livro de tristeza…
Manual para estilhaçar vidraças – Livro em que o poeta utiliza nos versos basicamente formas nominais (de infinitivo) e o único que contém um poema efetivamente recitativo: Manual para falar de amor às crianças. E também o único que revela algum senso de humor, como no poema Manual para fazer bola de goma de mascar, em que ensina, num algoritmo poético, como se deve fazer para ruminar um chiclete. No Manual para um repentista das facas, o poeta repete como um leit motiv o dístico que já se encontra em outro poema no livro Os ossos da baleia: “Meu punhal tem duas faces:/a que brota e a que geme.” Aqui, nesse poema, o poeta se revela mais religioso que nos outros livros: “rogo apelo à Virgem Santíssima,/ mãe do nosso Salvador / que perdoe a impertinência/ deste imbecil pecador” e “deixo o tinhoso de lado/ me apego com o divino,/ pois ser temente a Deus/ é melhor que ser defunto.” Curiosamente, no poema Manual de quiromancia de boteco (também com humor), o poeta traduz literalmente o cocktail (coquetel): “E mais um traçado, um rabo de galo,/ um conhaque nesse desapego.” Também aqui o humor se mescla com o pessimismo, como no poema Manual anti-insônia para o vigia noturno de cemitério: “seja a marmórea desgraça / ou o abençoado descanso,/ os mausoléus só existem/ para os vivos.”
XXI – É o último livro desta antologia, com muito lirismo e muitas reflexões. Referências ao pai, à mãe, ao irmão. O poema De irmão para irmão é um primor que aqui transcrevo: “Meu irmão tinha uma mala de livros / um dia ele a abriu/ na minha frente/ e partiu para o desmedido/ entrei na mala / e me cobri/ com as páginas de seus sonhos.” Aforismos não faltam, como no poema À frente: “Ao norte de mim mesmo / fica a eternidade.” Ou como em Monólogo: “A saudade é um engasgo estranho / que não cede com água gelada.” Ou, para encerrar, este de Paisagem submersa I: “Não bastasse chamar de vitória / o reconhecimento da derrota” e Paisagem submersa IV: “O grão é inútil se não sacia a fome / e a boca seca só permite o engasgo.”
Muito mais haveria a dizer sobre esta maravilhosa antologia, mas preferi ater-me aos poemas e ao que eles dizem ao coração e à mente do leitor. Certamente não faltarão estudiosos a debruçar-se sobre a linguagem do poeta. Quis apenas, como disse no início, apresentar os poemas desta antologia a fim de provocar a quem lê estas linhas o desejo de beber diretamente na fonte…
