Derivas de uma emoção

Por Luiz B.L Orlandi*

Ler este livro é entregar-se à experiência de uma leitura que desafia a própria tentativa de dizer o que está lendo, de explicitar-se como sobreposição discursiva. É claro que a fecunda experiência desta dificuldade ocorre ao longo de bons encontros com toda e qualquer literatura considerada excepcional, pois não há filosofia e muito menos alguma doxografia capaz de esgotar o que acontece quando se é tomado por uma obra de arte. Mas por que isso está acontecendo com minha experiência de ler, precisamente, este livro?

Talvez a razão disso esteja no modo pelo qual ele preserva as emoções que sinto toda vez que releio Grande Sertão: Veredas. Preserva, isto é, abriga derivas de uma emoção que se repõe diferentemente pela força de repentinas emboscadas. Mas como não se trata de uma cópia da obra de Guimarães Rosa e nem de uma interpretação que acabe por reduzi-la a representações objetivas ou subjetivas, cabe perguntar: do que são feitas, então, essas emboscadas que me emocionam ao longo das derivas? Apenas como tentativa de resposta, eu diria que elas são feitas de delicados encontros entre dimensões afetivas de certos conceitos e de sensações recobradas a cada passagem da grande obra.

Neste sentido, o acontecimento que se recria ao longo da leitura deste livro é o da virtual contaminação mútua de distintas travessuras do pensar e do sentir. De um lado, são travessuras irredutíveis a simples aplicações de conceitos que o autor colhe, principalmente, em suas leituras deleuzianas e foucaultianas. Por outro lado, trata-se de um pensar imerso em sensibilidade não meramente subjetiva, mas, como ali se lê, atento à “forte emoção de reviver os puros estados intensivos”, estados que fazem das frases do livro uma sutil exploração imanente aos entremeios das veredas.

 

*Professor Titular de Filosofia da UNICAMP- SP. Texto escrito para as orelhas do livro “Travessuras do desejo em ‘Grande Sertão: Veredas”, de Paulo Tarso Cabral de Medeiros, Arribaçã Editora, 2019.

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