A ARTE DE LOURENÇO CAZARRÉ

Por Regina Zilberman

 

A recordação inaugurou a corrente da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em geração. Ela corresponde à musa épica no sentido mais amplo. Ela inclui todas as variedades da forma épica. Entre elas, encontra-se em primeiro lugar a encarnada pelo narrador.

Walter Benjamin

 

O conto como gênero

Em “O narrador”, um de seus ensaios mais conhecidos, Walter Benjamin introduz diferenças conceituais nem sempre aceitas com facilidade pelos Estudos da Literatura. Para ele, o conto e o romance não são frutos da mesma árvore: o primeiro tem origem remota, reportando-se às narrativas de viajantes ou camponeses que, ao final da jornada de trabalho, se deleitavam ouvindo as histórias de pessoas que vinham de longe ou que, com idade mais avançada, recordavam episódios de seu passado. O romance é um gênero da modernidade, resultante da consolidação da imprensa, da vida urbana e da sociedade burguesa, que isola os indivíduos. Supõe a leitura, e não a audição, transmite-se pela escrita e não pela oralidade, não é compartilhada pelo grupo, e sim absorvido na solidão doméstica.

Não significa que o conto, na acepção que o pensador adota, não tenha migrado para literatura, ao modo das narrativas de Nikolau Leskov, o autor russo cuja obra motivou as reflexões do crítico literário alemão. Porque o conto, carregando resíduos de sua origem, pode se manifestar na escrita contemporânea, cabe ver em que medida a aspiração de Walter Benjamin pode ser atualizada, quando contraposta a outros contistas, a exemplo de Lourenço Cazarré, em livros como A arte excêntrica dos goleiros.

 

Lourenço Cazarré

Lourenço Cazarré publicou os primeiros livros de contos no começo dos anos 1980, mas também se destacou como novelista. O caleidoscópio e a ampulheta, vigorosa narrativa em que satiriza o governo dos generais que ocupavam o Estado brasileiro desde 1964, alinhando-se a uma vertente que tinha os hispano-americanos Miguel Ángel Asturias (Senhor Presidente, de 1946), Augusto Roa Bastos (Eu o supremo, de 1974) e Gabriel García Marques (O outono do patriarca, de 1975) entre seus cultores, recebeu o Prêmio Nestlé de Romance, em 1982. Nos anos 1980, lançou também Os bons e os justos, de 1983, Obscuros através da noite solitária, de 1987; e, no novo século, Sinfonia de animais noturnos, de 2007, A longa migração do temível tubarão branco, de 2008, A misteriosa morte de Miguel de Alcazar, de 2009, e Kzar Alexander, o louco de Pelotas, de 2018.

Livros de contos aparecem em quantidade similar, podendo-se lembrar: Enfeitiçado todos nós, de 1984, quando foi bicampeão ao receber novamente o Prêmio Nestlé, agora na categoria conto, Histórias suburbanas, de 1986, Noturnos do amor e da morte, de 1989, Ilhados, de 2001, e Exercícios espirituais para insônia e incerteza, de 2012. Integrou-se igualmente à importante corrente de renovação da literatura para a infância e mocidade, alavancada a partir dos anos 1980, o que o levou a criar narrativas em que predominam temas jovens, como a descoberta do amor, a aventura ou a história nacional. As qualidades de sua prosa estendem-se a esse gênero, optando pela apresentação do fluxo dos acontecimentos e o diálogo das personagens, sem preocupações pedagógicas ou moralistas.

A arte excêntrica dos goleiros apareceu em 2007, e está sendo reeditada (com ligeiras alterações na ordem dos contos) após a percepção do escritor de que valeria a pena colocá-la outra vez ao alcance do público leitor brasileiro. Vale antecipar que sua decisão foi acertada, porque o elenco de narrativas curtas apresenta características que valorizam o gênero, enquanto o aproximam dos elementos que Walter Benjamin julgou relevantes naquele modelo de história.

 

Catorze contos

A arte excêntrica dos goleiros compõe-se de catorze contos, protagonizados quase todos por personagens masculinas. Essas, ao lado das mulheres que despontam em algumas poucas histórias, compartilham similar situação, a das pessoas sem eira nem beira que vivem nas franjas de suas profissões: jornalistas fracassados, trabalhando em empresas de pouco expressão na imprensa ou no rádio, professores descontentes e sem perspectiva de crescimento intelectual ou progressão acadêmica, seres financeiramente falidos, desempregados, escritores que trabalham por encomenda – eis como a maioria se apresenta ao leitor, experimentando eventos que apenas acentuam sua decadência física, moral, social e econômica.

Enfim, um universo bastante desolador, porque não há segunda chance para eles. Mesmo artistas – a escultora que compõe monstros que apavoram a todos, o pintor recolhido a um sanatório ou o artesão capaz tão somente de elaborar uma narrativa ficcional de final trágico – não se destacam no cenário cultural. Como sugere a situação exposta desde o começo do relato, eles, de algum modo, estão confinados: um quarto, um apartamento (o do docente universitário de “A mansa loucura do professor de teatro e cinema”), uma clínica, uma fortaleza simbólica (a residência onde se esconde a artista plástica em “A religião do deserto, os deuses de areia”), colocados em uma situação de letargia que impede sua libertação, independentemente do modo, literário ou não, em que se expressem.

O goleiro anônimo, do conto que nomeia o livro, sintetiza essa condição. O narrador, onisciente, condição habilitada a assegurar ao leitor que o relatado deve ter efetivamente ocorrido, apresenta-o como uma figura imponente: “alto, peito largo e pés enormes”. A jornalista que vem entrevistá-lo explica a seu interlocutor que a matéria que elabora participa de uma “edição especial” promovida pela empresa em que trabalha “sobre os grandes craques do passado” e “ele, como o maior goleiro da cidade, o maior de todos os tempos”, não podia ser deixado de lado.

O craque, contudo, vive em uma residência modesta, em que a moça não identifica “um só quadro ou fotografia nas paredes mal caiadas”, sugerindo, pois, que não há registro qualquer do período supostamente glorioso. A casa modesta antecipa a situação precária do ex-jogador, caracterização que se acentua quando aparece, para servir um café à visita, sua esposa, “uma mulata alta de meia idade, ainda bastante bonita, mas tristonha” que trabalha como lavadeira, porque, “com seus lavados, ganhava o dinheirinho para a cerveja que ele religiosamente tomava todas as tardes no café Aquário”. Nada mais decepcionante que o ambiente exposto pelo narrador e corroborado pelas impressões da jovem entrevistadora, nada também mais sintomático do fracasso da existência do “maior goleiro da cidade”.

A narrativa, porém, não expõe apenas a história de uma renúncia. É igualmente a exibição de uma desistência, porque o goleiro, instado a responder à entrevistadora, não rememora seu passado, e sim o de seu tio, a quem delega o protagonismo do enredo. E, se o goleiro relata a admiração que nutre pelo parente que o levou ao futebol, evidencia também a depauperação física e existencial dos jogadores idosos, a cuja partida assiste por ocasião de sua iniciação àquele esporte.

Desde o ponto de vista das personagens, “A arte excêntrica dos goleiros” é um relato melancólico, em que um indivíduo fracassado não tem o que contar a uma jornalista inexperiente e meia-boca.

A situação de insignificância das pessoas representadas está presente em outras histórias, como no conto que abre a coletânea, “Os miseráveis vivem à beira dos rios”, em que um jornalista em fim de carreira relembra a um novato um evento que marcou sua juventude – o episódio em que, durante uma enchente, um catador negro e pobre salva a vida de uma idosa que não conseguira deixar a residência onde estava. É um ato heroico, mas sem sentido, porque as personagens não têm nobreza, nem alcançam qualquer tipo de reconhecimento. Suas vidas não deixam rastros, apenas na memória do jornalista cujo ofício principal é passar os dias bebendo no decaído bar de uma anônima e irrelevante cidade do interior.

“O mais solitário dos filhos de Deus” passa-se igualmente nesse meio deteriorado – “um bar de solitários de meia-idade, solteirões renitentes e quarentonas encalhadas, viúvos e viúvas, desquitadas e divorciados, gente honesta, obscura e quieta, com cabeça e pescoço acima da linha da pobreza” – em que aparece um indivíduo a quem o narrador aproxima aos náufragos “quando avistam ao longe um navio que, sabem, não vai socorrê-los”. É essa criatura que, após caladamente beber algumas cervejas e partir, é alvejado por uma prostituta, tão anônima quanto sua vítima, sem que se expliquem as causas do gesto, aparentemente tão ou mais injustificado quanto mais descartável parece ser o sujeito que levou o tiro.

O anonimato das figuras humanas, o ambiente rebaixado em que se passa a maioria das narrativas, a falta de perspectiva compõe um mundo sem esperanças e sombrio. Mesmo quando as personagens pertencem a uma classe social mais definida – como acontece ao engenheiro de “Breve relato do fiscal de obras sobre o fino pó das estrelas”, é notável o desalento de sua existência, pois se trata de um homem que, para chegar a seu trabalho, isto é, a seu provável objetivo profissional, escolhe trajetos cada vez mais distantes do destino final – uma espécie de Uber ao avesso, o que o leva à demissão e encaminha-o para a condição de desempregado, partilhado com grande número de figurantes dos contos.

Nada mais afastado do universo que Walter Benjamin considerou relevante nas narrativas curtas, a Erzählung, que motiva suas reflexões. Cabe, contudo, examinar como Lourenço Cazarré constrói seus contos, para reinterpretar suas conexões com a proposta do filósofo alemão.

 

Contos metalinguísticos

O recurso à metalinguagem está presente na maioria dos contos da coletânea de Lourenço Cazarré, a começar pelo título da obra que alude à arte, no caso excêntrica, dos goleiros. Assim, temos, ao lado da escultora de “A religião do deserto, os deuses de areia”, o pintor de “Consolo de Jó para o artista moribundo”, a autora de um caderno cujo conteúdo ela não quer revelar em “O horror que não podemos compartilhar”, um romancista a quem é encomendado uma narrativa policial que se confunde com a execução de um crime, em “O romance policial do contista fracassado”, e um artesão que, enquanto molda figuras em forma de bonecos, elabora um drama de final catastrófico, em “O drama do artesão e das suas criaturas (Noite brasileira)”. Há também leitores, especialmente o que protagoniza “O homem que amava os clássicos russos”, admirador da novela russa do século XIX, cujos enredos, de certo modo, mimetiza, ao optar por um caminho trágico para resolver os problemas financeiros ocasionados por sua falência econômica. Há, ainda, um evangelista – ou um imitador do estilo dos sermões de Cristo, em “O evangelho das coisas ínfimas”.

Porém, o que caracteriza a maioria dos contos é a adoção de uma técnica preferentemente dialógica, não por se reproduzirem as falas das personagens, mas por se duplicarem os narradores. Em “Os miseráveis vivem à beira do rio”, o primeiro narrador, o jovem radialista, passa a palavra para o colega mais experiente e na mesma proporção mais pessimista no que se refere aos rumos de sua profissão, para que ele possa contar o episódio da enchente, em que o catador negro salva a idosa presa em sua casa, sem que ela tome conhecimento da pessoa que a resgatou da morte certa. Em “A mansa loucura do professor de teatro e cinema”, dois docentes universitários de certo modo disputam o espaço narrativo, dividindo as páginas do texto sem que conversem entre si. Em “A religião do deserto, os deuses de areia”, a escultora dirige-se a um interlocutor ausente, enquanto que, em “Consolo de Jó para o artista moribundo”, alternam-se as perspectivas do pintor e do jornalista que o visita na clínica em que está internado. Em “O horror que não podemos compartilhar”, há uma única personagem que, contudo, identifica, em sua imagem no espelho, uma segunda pessoa a quem se dirige e de quem espera respostas. O procedimento de exposição oral a um ouvinte, despersonalizado mas presente, reaparece em “Naquele tempo era muita zoeira”, enquanto “O romance policial do contista fracassado” multiplica as vozes narrativas, característica que retorna em “O drama do artesão e das suas criaturas (Noite brasileira)”, que assume o relato por meio do modo dramático, ou direto, como classificaria Aristóteles na Poética, de exposição da trama.

Com “A arte excêntrica dos goleiros”, não poderia ser diferente, pois temos, além do narrador em terceira pessoa, qualificado como onisciente, a voz do goleiro narrando sua iniciação no futebol, ouvido por uma jornalista com um gravador ligado.

É o goleiro o narrador mais importante do conto, pois é quem relata a história que lhe pertente, tanto quanto pertence ao tio, um goleiro idoso que não conhecera qualquer tipo de fama ou glória. O tio goleiro é o futuro do goleiro iniciante que, ao começar a narrativa, é o goleiro idoso e decadente, conforme um processo cíclico de irreparável decadência.

Os goleiros, por sua vez, são homens solitários: “um goleiro não se mistura”, diz o tio ao sobrinho, frase que, no parágrafo final, ele repete à jornalista. “Não se mistura”, mas narra, poder-se-ia contestar. O velho arqueiro precisa passar adiante a experiência do passado; mas não para a esposa, “tristonha”, e sim para a jovem jornalista, aprendiz de uma profissão que lida primariamente com a palavra.

O protagonista, que é antes de tudo um narrador, necessita dessa interlocução, porque é pela transmissão da experiência que ele se faz sujeito – ou artista, detentor de uma propriedade “excêntrica”, singular, excepcional e até bizarra, conforme o dicionário define o vocábulo. O goleiro é, desse modo, a alegoria do escritor, duplo do autor que, como aquele, aposta na forma narrativa para alcançar o outro.

Quando começa a relembrar a adolescência, “o rapazinho de uns doze anos” que assistiu “pela primeira vez uma partida de futebol” ouve o tio afirmar: “a seara dos goleiros só produz barro”. O barro é a matéria básica da criação, de onde proveio a humanidade, como narra o Gênesis, e que propiciou as primeiras obras, de natureza manual. Não por outra razão o indivíduo que “produz barro” é um artista, reiterando o caráter alegórico da personagem, expressando a concepção do autor sobre seu ofício – solitário, sim, mas comunicativo sempre.

Da tradição oral e popular às narrativas de Lourenço Cazarré, em A arte excêntrica dos goleiros, o conto mantém seu vigor enquanto manifestação vibrante de humanidade.

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#cz158anos – 2

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