A filosofia deleuziana em Grande Sertão: Veredas

Por Linaldo Guedes*

Certa vez um professor de Teoria Literária na UNICAMP, conhecido como Haquira, informalmente, pega Paulo Tarso Cabral de Medeiros dizendo algo assim: você quer ter uma experiência de vida única, insubstituível, intransferível? Leia o Grande Sertão: Veredas! “Já tinha lido no Mestrado e já tinha ficado deslumbrado, claro, mas guardei a genial recomendação”, conta Paulo. Depois, numa caminhada pelo calçadão do Cabo Branco, em João Pessoa, olhando o mar azul e infinito com seu orientador Luiz Orlandi, este acena assim: “por que você não pega o Grande Sertão? Veja quantos conceitos do Deleuze estão lá…”

Foram as deixas necessárias para que Paulo Tarso resolvesse fazer o doutorado, pela Unicamp/SP, sobre as relações entre a obra “Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa, e a filosofia do francês Gilles Deleuze. Não só isso, como enfatiza Paulo: “Mas o que me coagiu, me forçou, me levou a pensar de verdade nesta ideia foi a leitura de ‘Proust e os signos’, do Deleuze, um dos livros que mais me impressionaram na vida, fiquei impactado, e vi ali um caminho, um intercessor para ler Guimarães Rosa em boa companhia”.

A ideia de encontrar elos entre a filosofia de Deleuze e a obra de Rosa não foi fácil de ser executada. No início, Paulo Tarso não sabia no que isso ia dar. Relia e relia Grande Sertão e ficava em êxtase, maravilhado, e lia muita filosofia. “Trabalhava muito, morava sozinho, me alimentava mal, levava sempre um livro e aquelas canetas coloridas, sentava num daqueles fiteiros na praia, tomava cerveja e grifava, isto todos os dias por cerca de dois anos”, revela..

Sim, Michel Focault já disse uma vez que o século seria deleuziano. Mas até Rosa seria também? Nascido em 1925 e falecido em 1995, Gilles Deleuze foi influenciado por Nietzsche, Henri Bergson e Spinoza, entre outros. Para ele, filosofia é a criação de conceitos. Sua filosofia é considerada por alguns como a filosofia do desejo. Guimarães Rosa nasceu em 1908 e morreu em 1967. É considerado pela crítica o autor mais inventivo da literatura nacional na prosa e não seria exagero considerá-lo um James Joyce dos trópicos, com seu realismo mágico, regionalismo, liberdade de invenções linguísticas e neologismos – tudo isso presente em “Grande Sertão: Veredas”, afora a intrigante história de Riobaldo e Diadorim.

Paulo Tarso transformou sua tese de doutorado no livro “Travessuras do desejo em Grande Sertão: Veredas” (Arribaçã Editora, 2019). No livro, como na tese, Paulo vai além do encantamento pela poesia contida na obra de Guimarães Rosa. Muito mais.

Sobre o método empregado na construção da tese, Paulo Tarso revela que sente-se parte daqueles intelectuais que estão convencidos que, na história das ideias, existe um antes e um depois dos acontecimentos de 1968 por toda a parte.

– De repente, me sentia livre e me agarrei a frases de Deleuze, do tipo não há nada a compreender, nada a interpretar. Os conceitos são como sons, como cores, como intensidades que te convém ou não, são como anéis partidos que você conecta ou desconecta ao sabor das suas estratégias, das suas premências teóricas, aos seus desejos. Faça o que o seu desejo quiser, ele diz, mas passe antes pelos estágios de conhecimento que Nietzsche bem definiu, como sendo o “estágio camelo”, a acumulação trágica do saber; depois o “estágio leão”, a revolta e a liberação deste peso acumulado nas costas, até chegar ao “estágio-criança” ou “devir-criança” aquele no qual você cria brincando e brinca criando… – teoriza.

Pergunto-lhe a quais conclusões chegou após a finalização do seu trabalho. Paulo cita a clássica frase de Sócrates, “só sei que nada sei”, e que é necessário ler e reler os grandes autores, sempre. “Que o pensamento em arte e em filosofia é belo e trágico, que é prazeroso e dói, que tudo pulsa e que só a cultura pode nos tirar da barbárie, do horror cotidiano, dos conservadorismos reativos, dos fluxos fascistas em nós e nos podres poderes, nos fazer resistir a opressões, e essencialmente afirmar a vida”, completa.

O livro tem prefácio de João Adolfo Hansen, professor da USP, que entende que Paulo lê a literatura de Rosa como encenação de atos de fingimento. Ao comentar essa assertiva, Paulo destaca que Hansen é um profundo estudioso da linguagem, com um “espantoso” livro chamado “o O” sobre Guimarães Rosa. “Foi um precioso aliado teórico neste trabalho, sem que tivéssemos nos conhecido antes. O generoso prefácio dele dá mostras de sua imensa erudição e sensibilidade. Como tal, dialoga com a Linguística e a Filosofia por caminhos que algumas vezes nem consigo alcançar”, afirma. E continua:

– Sei que estamos juntos nesta amigável polêmica, acreditando que a ideia de literatura como representação, mimese, transposição simbólica do real, nos dá pouco, muito pouco sobre a obra literária, embora se possa tirar bons proveitos desta herança crítica, como espero ter mostrado ao longo do livro. Daí que esta destruição das formas lineares do realismo, deste efeito fictício que dissolve as representações para efetuar o vir-a-ser- das sensações desemboque nesta “encenação de atos de fingimento” que você fala.

Afinal, para Deleuze, Literatura é invenção de mundos possíveis, criação de seres de sensação. “Daí que, nesta trilha, segundo Hansen, as formas singulares de Rosa sejam seu projeto político de dar forma ao informe. Eu concordo. Mas há aí uma estória curiosa, que talvez valha a pena contar: depois de ter admirado e elogiado meu trabalho ele disse: ‘você não acharia mais apropriado citar ´Pipoca Moderna´ de Caetano Veloso, ao invés da canção de Chico Buarque e Cristóvão Bastos?’. Perguntei se era uma leve provocação, e ele disse que sim, que eu ficasse à vontade…”, relata (em tempo: no livro, Paulo Tarso cita a canção “Todo o sentimento”, de Chico Buarque e Cristovão Bastos.

“Fiquei pensando nela um bom tempo. É claro que ‘Pipoca Moderna’, com sua criatividade, sua forma híbrida, sua surpresa, sua mescla de tradição e invenção tem tudo a ver com a grande obra de Rosa. Mas a canção do Chico Buarque, na pungente interpretação de Zizi Possi, me fazia chorar, e eu entrevia algo ali, muito, muito do que se passava entre Riobaldo e Diadorim. Deixei assim”, acrescenta.

O que seria mais original e arrebatador na obra de Rosa? “Tudo”, resume Paulo. Na sua avaliação, um livro que começa com uma palavra chamada “nonada” e termina com o símbolo matemático do infinito, só pode ser pura poesia, lirismo surpreendendo e arrebatando o leitor, e fazendo-o pensar, já que contém variados processos de mutação, de multiplicidade, de assujeitamento, enfim.

– Gosto de lembrar o momento, ainda meio no começo do livro, no qual Diadorim aponta para Riobaldo um passarinho na árvore, e fala da beleza das suas cores, da sua tenra e terna altivez, da sua elegância e destreza, quando o jagunço-narrador, diz algo como: “eita, e eu que achava que passarinho era só pra caçar, matar e depois comer!” E assim vai Riobaldo, olhando aquele jagunço que admira, sente e bota beleza na natureza, assim vai se fixando no narrador este signo, este enigma: Diadorim? Diadorim? O que é? E eu? Fui? Sou? – comenta.

Fascina também, segundo ele, o fato do narrador, ao contrário da ânsia totalizante de tantas leituras apressadas e redutoras, estar quase sempre em estado de interrogação. Foi? Não foi? Sei? Não sei? O senhor me organiza? “Não se pode desprezar esta superfície estruturante da prosa.

Nem o pacto com o demo é ponto central de articulação do enredo; como, se ele próprio não sabe se houve, houve? Não houve? Uma metamorfose sim, uma potência de vir-a-ser, contida nas dobras e redobras de todo acontecimento pode ser um caminho menos simplificador. Imagino que assim se usa Deleuze como ele provavelmente gostaria”, provoca.

Analisar uma obra tão complexa como Grande Sertão à luz da filosofia não é tarefa fácil, repetimos. Principalmente, se tomar Grande Sertão como uma obra cuja memória é móvel de aprendizagem. “Daí em diante boa parte do Deleuze jorra e é possível assim estabelecer um encontro feliz. Daí os conceitos deleuzeanos de signo, estratificação, multiplicidade, devir, e tantos outros vão se anelando aos devires do próprio narrador, bastando apenas o enorme esforço de aproximá-los para fazer ver a força da literatura e da filosofia quando se encontram”, teoriza. E questiona:

– Por exemplo: fala-se demais na violência, no universo da jagunçagem e do coronelismo para compreender (?!?) Grande Sertão. Ora, um bom livro de Sociologia explicaria estas noções com facilidade. Mas seriam noções suficientemente explicativas para me dar o que nos arrebata e nos ultrapassa em Grande Sertão: Veredas?

Luiz Orlandi fala de emboscadas roseanas. Paulo Tarso observa que Orlandi é um dos raros professores de filosofia que fazem pensar (ao invés de repetir o já dito, o já escrito) e estimula provocando. “Emboscada, pra mim, foi me meter com esses dois gênios da linguagem e do pensamento, tendo de caminhar muito no estágio-camelo, tentando decifrar, entender, digerir e fixar a plêiade de conceitos criados por Deleuze, Guattari, Foucault, um certo Freud, um certo Lacan, etc. O próprio Deleuze dizia que preferia ter como alunos e leitores justamente os não-estudantes-de-filosofia, pois que naqueles seus desejos se mobilizavam. Se você bobear você estanca, se paralisa, se consome em tecnicalidades próprias da Disciplina e aí sua sensibilidade, suas emoções, suas percepções e afetos podem te atrofiar, correndo o risco de meramente ‘repetirrepetir’ qualquer definição contida na imensa bateria conceitual que outrora eventualmente sentia ao ler e ouvir estes criadores.

Paulo Tarso revela que uma coisa que lhe dói na tese foi não ter dedicado, quem sabe um capítulo, às mulheres no Grande Sertão. “Mutema, Nhorinhá, há uma ternura e uma sutileza imensa de Riobaldo aí, há as putas que as tropas de jagunços visitam quando podem. Aqui Riobaldo exerce sua multiplicidade-jagunço sem qualquer estranhamento, está bem estratificado. No mais, se eu pudesse resumir este livro em uma só ideia eu diria: nós somos múltiplos mas dispomos de poucas formas sociais para exercermos intensamente estas multiplicidades”, finaliza.

Sobre Paulo Tarso

Paulo Tarso Cabral de Medeiros é professor do Departamento de Ciências Sociais, do Programas de Pós-Graduação em Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Graduado em Ciências Sociais, Mestre em Teoria Literária e Doutor em Filosofia, todos pela UNICAMP / SP, é autor de “A Aventura da Jovem Guarda” (Brasiliense) e “Mutações do sensível – rock, rebeldia e MPB pós-68” (Manufatura), além de colaborar em algumas coletâneas e de publicar vários artigos em jornais e revistas acadêmicas.

 

(*) Poeta, jornalista e editor. Matéria publicada na revista Correio das Artes, do jornal A União, edição de junho de 2019)

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