A mão do mistério na poesia de Antônio Moura

Antônio Moura alerta logo no início da obra que alguns poemas deste livro foram escritos sob o impacto de certos acontecimentos do nosso passado recente. De fato, o leitor vai encontrar, neste livro, pegadas de um mundo asfixiado por uma pandemia, de um Brasil governado sob o signo da loucura.

Mas “Caos, Cosmo” é bem mais do que isso, como toda boa obra literária que se torna universal pela qualidade de quem a escreve. E outras pistas são encontradas no título, dúbio e ao mesmo tempo uno. Caos, sabemos, vem do grego khaíno, que pode ser traduzido como “separar”. Sua relação com a desordem e o desequilíbrio só foi atribuída pelo poeta romano Ovídio. Para a filosofia, caos pode ser a personificação do vazio primordial, anterior à criação, no tempo em que a ordem ainda não tinha sido imposta aos elementos do mundo.

Já Cosmo, tem origem em duas palavras gregas: cosmos, que quer dizer universo, e gignomai, que remete a nascimento. Trata-se, segundo consta, de um relato que explica a criação e a ordem do mundo e, ao mesmo tempo, o surgimento dos seres humanos.

De um lado, portanto, a separação, a desordem, o vazio: o caos. Do outro, o nascimento, a criação: o cosmo. Entre um e outro a poesia de Antônio Moura, esse poeta nascido em Belém, no Norte do país, que migrou para Petrolina, no Nordeste, e vem construindo uma trajetória sólida na literatura brasileira, com vários livros publicados e aclamados pela crítica, além de traduções de obras seminais em francês e espanhol.

Sempre que leio a poesia de Antônio Moura lembro do poema “Catar feijão”, de João Cabral de Melo Neto. Diz o poema: “Catar feijão se limita com escrever:/ joga-se os grãos na água do alguidar/ e as palavras na folha de papel;/ e depois, joga-se fora o que boiar”. Por que essa lembrança? Porque ao ler a poesia de Moura, a impressão que fica é que não tem nada boiando. Nenhuma vírgula a mais ou a menos, um ponto fora do lugar, um advérbio atrapalhando, um título destoando do conteúdo. O leitor pode achar, então, que seria uma poesia muito cartesiana, mero jogo de linguagem, o que é um engano. Assim como o próprio Cabral, Antônio Moura é, digamos assim, rigoroso na linguagem, sem deixar de ser expansivo no conteúdo. Expansivo aqui no sentido de se comunicar facilmente com o leitor. Uma poesia que flui na correnteza da linguagem e que faz lembrar os rios da Amazônia, onde o poeta tem sua origem. Por mais que incorpore antropofagicamente influências vanguardistas, Antônio Moura é um poeta singular na literatura brasileira de hoje.

Passemos ao livro de Antônio Moura, então. Já no primeiro poema ele corrobora essa minha lembrança do poema cabralino, com “A mão do artista”. Se em Cabral catar feijão se limita com escrever, em Moura é entre folhas de livros e folhas de plantas que a mão do artista e a mão do mistério buscam um acordo.

Veremos esse acordo se configurar em diversos poemas do livro, sejam eles líricos, políticos, sociais.

Vejam “A flor”, por exemplo, onde para fugir do inferno que se abriu com o filhote com hálito de peste, o poeta busca a redenção “no arco de teu riso”. Mistério que se amplia de forma magnífica no poema “José, 1946-2020”, um dos mais belos do livro, numa espécie de canção pungente, sem ser melancólica. Ou “Diogo Móia, 262”, onde vi rastros de Lorca no azul sobre o vermelho das telhas.

E já que falei em canção, o livro é pontuado de várias delas, como “Chuva das três”, que reproduzo abaixo:

 

Caía a lendária chuva das três, cumulonimbus,

pontual, todo dia, assim como também havia

 

o amor diário de Aurélia, Armanda, Maria,

três operárias na lida constante do dia a dia,

 

a juventude das mãos ferida na fábrica

de castanha, nos duros cacos das cascas

 

quebradas, quebrando também o ânimo,

a ânima, na mais-valia, usurpação da vida

 

Não é de toada única o cancioneiro poético de Antônio Moura. Em “Cronos e Kairós” fala de um tempo que dura, de outro que fulgura. Em “Ágrafo”, da palavra deuses soprada pela boca e que milhões de mundos se iluminam e se apagam ao ouvi-la. “A uma edição de 1946”, do mar e do tempo que se uniram num velho livro, antes mesmo de ser impresso. “Esfinge” conta que a natureza humana não está em nenhum lugar. “Cântico II” busca utopia de seguir fabricando jardins suspensos, soletrando flores sobre a terra. São tantos poemas que emocionam e encantam nesse livro, pela simetria entre linguagem e conteúdo, que se continuar citando-os esse texto não terá fim.

Deixo, ao leitor, a “Bússola”, que resume um pouco essa simetria na poesia de Antônio Moura, essa busca do mistério na palavra:

 

Bússola

               

Diante dos horrores do mundo

na casa de tijolos imperfeitos

 

entre a fragilidade de tudo

procuro

criar para ti um jardim de ar

tão puro

 

 

Linaldo Guedes

Escrito no janeiro quente do sertão cajazeirense de 2024

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