A poesia atual de José Leite Guerra – Lenilson Oliveira

Não precisa ser um grande estudioso ou grande leitor de poesia para saber que há poemas e poemas atemporais. A assertiva vem nos auxiliar na análise, mesmo superficial, da poesia com que José Leite Guerra nos brinda em “O circo, o bicho e a festa”, no qual reúne poemas de “O circo”, de 1967, e os posteriores “O bicho” e “A festa”.

Começaria dizendo que a poesia de José Leite Guerra se encaixa perfeitamente na classificação de “atemporal”, não obstante os poemas de “O circo”, de finais da década de 1960, tão bem ainda dizerem muito dos dias atuais.

Já no primeiro poema, ele convida o leitor a entrar no seu “circo”, em tempos de medo e perseguição a estudantes e intelectuais que se postavam contra os interesses do regime autoritário recém-instalado no país. O poeta demonstra sintonia com os sentimentos de revolta e insurreição que tomava conta da juventude da época e quase podemos ouvir as teclas da sua máquina de datilografia marcando o papel em branco com versos de coragem como estes, encerrando “Convite”:

lá dentro a vida

perdeu o medo

de virar sangue

“A queda” é outro poema em que José Leite Guerra deixa sua poesia fluir contra o estado de coisas imposto ao Brasil na época e que perdurou até meados de 1980:

mortos no chão

aplausos, risos

da multidão

Quantos mortos não estão nas contas do Regime Militar, que oferecia “pão e circo” – mais circo, é verdade – à grande massa? O exemplo maior foi a conquista da  Copa Mundial de Futebol de 1970, que despertou um ufanismo sem precedentes na nossa História recente, despertando “aplausos, risos” e ofuscando a dura realidade vivida pelo país e denunciada por movimentos sociais, estudantis e artísticos, todos perseguidos.

A vida circense é retratada nas suas formas mais íntimas, como no animal que não estar no picadeiro  ou no palhaço frustrado:

cauda inquieta

pulso, intenção

de ser floresta

E:

velho palhaço

(…)

doente imagem

do nu fracasso

Já em “O bicho”, no segundo tomo do livro, o poeta vai beber na fonte de Manuel Bandeira para denunciar as mazelas sociais, como a fome:

Destino-bicho

Andar as milhas

Levando a carne

Magra estendida

N’osso, costelas

Para acabar

Numa vasilha

“A festa”, por sua vez, nos reserva uma poesia mais suave, inclusive com alguns flertes do autor com o concretismo, como em:

Estranha vida

                   e

                   r

                   t

                   i

                  g

                  i

                  n

                  o

                  s

                 a

(…)

As boas vindas à leitura são do próprio poeta:

Meu circo é largo

A humanidade

Cabe completa

Em seus assentos

Entremos e sentemos todos, então, para o espetáculo da poesia.

(Texto publicado nas orelhas de “O circo, o bicho e a festa”, de José Leite Guerra, Arribaçã Editora, 2020)

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