DE OLHO NA ESTANTE: Pentagrama de lembranças em “Ranhuras da gente”

Por Johniere Alves Ribeiro

 

“Isaura não conseguiu prever o noivo. Talvez no próximo ano, com a bacia de velas virgens, tomasse cuidado e rezasse com calma. Nunca casara, nunca tivera filhos, mas naquela casa viu todas as crianças nascerem. Vocalizam gargalhadas agudas e disseminavam segregação de classes. Entre mordidas e gargalhadas, em conversas supostamente afáveis, apostava sobre a fidelidade de algumas senhoras casadas, possíveis traições. Contudo, guardam para sempre a memória do mergulho espiritual nos afetos. Sob o semblante da Imaculada, esperávamos todos pela noiva com olhares inquietos e burburinhos ondulantes. Guiada pelo cunhado, entrou pela nave da igreja, usando um decente vestido de cintura, branco-pérola, que ia até o joelho. Nas mãos, um buquê de flores brancas, pequenino como ela: na boca um sorriso discreto, salteando o leve ruge nas bochechas. A beleza da simplicidade! – Ó, Maria, em teu louvor aqui estamos aos teus pés, Ó, Mãe Pia…”

 

“Ranhuras da gente” é o primeiro livro de Vianey Santos e o parágrafo acima foi uma  compilação minha de fragmentos presentes em 7 contos desse livro. Eu poderia continuar a brincadeira alocando trechos dos outros contos restantes do livro, e conseguir manter uma certa linha narrativa. Fiz isso como uma forma de comprovar que os contos de Vianey fazem parte de uma espécie de partitura musical, um pentagrama no qual uma música é tocada em vários compassos, ritornelos, pausas, continuações, etc. Nesse caso, os contos: i) “A madrinha de fogueira”, ii) “As caçadoras”, iii) “O Turbante e a jabuticaba”, iv) “O velório surpreendente”, v) “A dança extática”,  vi) “O bolo de noiva” e vii) “A Procissão” não lidos, para mim não foram escritos, mas como em uma orquestras de letras foram tocados, regidos harmonicamente neste varal de “lembridades” transcritas em cada história.

Os contos de “Ranhuras” me remeteram as minhas próprias linhas quase harmônicas da memória – digo memória não em um sentido essencialista, mas no sentido de recordação mesmo, já disseram um dia que recordar é viver algumas vezes. Nesse sentido, segue a leitura das minhas cotidianidades infantis. Tudo me soava em forma de andamentos elaborados mentalmente: ora allegro ora presto. Em outras situações imagens em moderato. Daí, vinham as festas juninas com seus folguedos, juramentos ao calor da fogueira acesa, os padrinhos e/ou as madrinhas “de fogo”; as festas de casamentos no interior com todas as suas singularidades; o carnaval de rua. Creio que boa parte dos leitores também irão compor suas partituras afeto-lembrariais.

Vianney dos Santos, além dos contos, nos convida a admirar as aquarelas que também fazem parte da obra e aparecem antes de algumas histórias. São desenhos que configuram uma atmosfera de afeto, desenhos conectados às figurações que orbitam o campo das reminiscências

“Ranhuras da gente” é a obra indicada neste DE OLHO NA ESTANTE. Vale a pena ler. Uma escrita leve e recheadas de mecanismos simbólicos de memórias.

 

* Johniere Alves Ribeiro é professor-doutor e resenhista parceiro da Arribaçã. O texto acima foi publicado na seção “DE OLHO NA ESTANTE”, em seu perfil no instagram: @johniere81

 

_________________________

 

O livro “Ranhuras da gente”, de Vianey Santos, pode ser adquirido no site da Arribaçã no seguinte link: http://www.arribacaeditora.com.br/ranhuras-da-gente/

Deixe uma resposta