DE OLHO NA ESTANTE: Rasgo Poéticos – Egberto Vital

Por Johniere Alves Ribeiro

 

Haroldo de Campos, ao pensar a poesia contemporânea, afirma que ela é sempre “sincrônica” e que ela quase nunca é “ diacrônica” . Lembrei muito dessa concepção haroldiana ao ler “Rasgos Poéticos” (Arribaçã, 2023) do poeta Egberto Vital.

Esta noção de Haroldo nos sinaliza a ideia de que o artificie da poesia é um ser hodierno, centrado em contexto cultural, temporal e social bem definidos. Tal percepção no conduz ao entendimento de que o fazer poético, bem como o seu “produto artístico”, não é uma ilha e que também não é um construto dos píncaros inacessíveis. Na esteira desse pensar de Campos a escrita versíca contemporânea necessita do brotar do chão, da sincronicidade para existir como algo inerente ao cotidiano do seu público leitor, visto que ela é essencialmente fruto das: 1) reflexões do dia a dia, 2) das preocupações internas e externas ao ser e enfim das 3) discussões inerentes a um tempo/espaço.

Assim, é forte o tom de sincronicidade nos poemas de Egberto Vital em seu novo livro. O que pode ser atentado já no poema que abre a obra:

A sineta toca,

Só mais uma notificação

do celular, que registra,

no perfil photopedagógico da e-scola ,

mais uma nota de pesar –

model Canva.

Enquanto a gente googlemeeta nossas aulas,

Quantos mais vão nos deixar? ( p. 13)

 

Mais do que a “sineta” que toca, creio que são os três pontos das reticências que gritam aos olhos do leitor diante desse poema sem título. Parece que a voz do eu lírico abre o poema pasmo. Como se o eu lírico limpasse a garganta antes de produzir o verso. Digo isso, porque fica evidente o contexto de produção do poema: a terrível pandemia da Covid-19. Contexto que irá dar o tom de boa parte do livro “Rasgos poéticos”. Por isso, não se pode ler tais reticências com o mero sentido de suspensão. As vejo muito mais como uma boca aberta, pronta para tragar a voz poemática do texto, bem como a engolir a voz silenciosa do leitor que declinar seu olhar ante os versos do poema. Contudo, além de tragar e engolir, os três pontinhos também emudecem. As reticências nos impressionam ainda pelo tom cortante da incerteza, insegurança e a terrível ameaça de morte estabelecida pela presença do vírus pandêmico.

Talvez, esteja aí o início do rasgo poético que autor procura nos provocar durante todo o livro. Até porque todo rasgo começa em alguma ponta, em algum dos lados. O poeta escolheu o primeiro poema para isto.

O poema ainda denuncia o rasgo no tocante ao contexto escolar, sua antiga rotina e sua ressignificação no atual contexto: “ no perfil photopedagógico da e-scola” ou “Enquanto a gente googlemeeta nossas aulas”. Retrata a forte presença da morte: “mais uma nota de pesar – / model Canva”. Esse mesmo perfil contextual é presentificado nos poemas: “haicai pandêmico” e “Post Mortem” por exemplo.

Em “Rasgos poéticos” também fica perceptível o modo como nos foi imposto, via “regime da informação” (Byung-Chul Han) e o contexto pandêmico, a incursão em um campo linguístico/semântico e vocabular diferente daquele estávamos acostumados acionar: “e-scola”, “notificação”, “celular”, “poemeeting”, “likes”, “hype”, “sci-fi”, “ delivey” , “e-cloud” vocábulos “linkados” ao mundo da informática e das redes sociais. Essas expressões enfatizam a relevância de compreendermos que a poesia é um produto do seu contexto temporal e cultural. Nos fica também evidente que ela se permite transcender possíveis limites advindo de tais aspectos, tornando-se um meio de comunicação intercultural e intergeracional. Portanto, ao analisar o interior do uso de tais expressões no poema, o pensamento de Haroldo de Campos é reforçado e confirmado, já que elas são um reflexo ativo do presente. E de alguma maneira, tais vocábulos juntos agem como uma espécie de lente pela qual podemos compreender e dialogar com a complexidade cultural/social/temporal e histórica na qual estamos imersos. Desse modo, o cotidiano mais comum salta com um protagonismo pouco visto, todavia sem afasta-se do crivo do ordinário. É o caso poemeto Ivete:

 

Para poder criar os filhos,

ela recebia

para cuidar dos filhos dos outros (p.90)

 

Como se observa esses versos apontam para uma problemática profundamente social. A partir deles me veio a lembrança o instigante e polêmico filme “ Que hora ela volta? (2015)” escrito e dirigido por Anna Muylaert. O drama, que tem Regina Casé como protagonista, retrata a vida de uma empregada doméstica – Val – e seus conflitos no interior do seu trabalho/casa ante seus patrões, representantes de uma classe média alta brasileira. Tal como o filme de Muylart, o poema Ivete é uma denúncia à invisibilidade do trabalho imaterial do cuidar, realizado por mulheres que sobrevivem do trabalho doméstico no Brasil e expõe as profundas fraturas da vida dessas trabalhadoras.

Rasgos poéticos deixa-nos invadir por suas fissuras versícas, quem ler E-cloud (p.22)  sentirá isso. Um poema que se comunica com o Concretismo, devido o seu apelo visual e não convencional. Em uma escrita poemática produzida no “fora” do sistema tradicional da poesia e produz seus versos no modelo de “nuvem de palavras”, gênero que se popularizou na internet e nas redes sociais no contexto da pandemia. O mesmo é composto por uma tempestade de palavras, que quando digitadas em programa computacional estabelece um agrupamento de palavras em forma de nuvem, daí o nome do texto.

Outro poema que se aproxima da mesma técnica usada em E-cloud é “ Free Britney, referência a cultura pop contemporânea; e em haicai pandêmico  :

Egberto conhece bem seu ofício. Sabe da sua responsabilidade de poeta. O modo como suas palavras devem compor, recompor, ressignificar, repensar seu próprio tecer. “Modificar-se” é um poema que nos imprime um ritmo, uma rotação em suas interfaces múltiplas, como quem se sente insaciável pela reversão das coisas que tocam e que constituem o nosso contexto social. Até o ponto de “que protestar seja uma nova moda” e “ que essa moda  esteja na crista da onda”. Vital nesse poema aproxima seus versos de um tom que se  assemelha a linguagem de diário. Não com um molde, nem como uma estrutura de encaixotamento, mas com uma linguagem de confissão como quem acelera o

 

grito de queixa:

[…]

E que modifique-se de novo

Que seja moda a moda das ruas

A moda dos bêbedos

[…]

Que modifique-se Lenine

Caetano e Gil

Vamos ritaleezar a moda

Nordestinizar São Paulo

E samplear o Nordeste

[…]  ( p.51)   

 

Chamo atenção para os versos finais do fragmento acima: “Nordestinizar São Paulo / E samplear o Nordeste” neles a presença de equiparação, que demonstra potencialidades entre duas espacialidades e que, por isso, não precisa, ao menos no ver do eu lírico, de preconceitos entre elas. O poeta cogita uma possibilidade de equivalência, de agenciamentos, de trocas entre o Nordeste e São Paulo.

Os versos evocam a construção histórica de um discurso paradoxal, pois como sabemos São Paulo furtou para si a imagem de um lugar moderno, por ser uma metrópole onde mundo se encontra no cruzamento da Ipiranga com a São João. Até porque, vale ressaltar que São Paulo é um estado que afasta tudo aquilo que não é espelho. E neste afastar o que não é espelho, Sampa também forjou, em parte, alguns dos preconceitos e de estereótipos em torno do Nordeste, já que concentrou, por intermédio do poder econômico, os grande conglomerados: de tv e rádio, de editoras, de jornais impressos, movimentos literários, universidades reconhecidas mundialmente, etc. Mas o poema de Egberto Vital segue noutro caminho, estabelece uma via de mão dupla, para um trânsito de fluxo continuum entre Nordeste e São Paulo, de maneira que não haja nenhuma ruga entre estas lugaridades.

Por todos esses aspectos sinalizados e outros mais, que nós do DE OLHO NA ESTANTE indicamos Rasgos poéticos ( Arribaçã, 2023) de Egberto Vital. Então, boa leitura.

 

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*  Johniere Alves Ribeiro é professor-doutor e resenhista parceiro da Arribaçã. O texto acima foi publicado na seção “DE OLHO NA ESTANTE”, em seu perfil no instagram: @johniere81

 

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