Lapidando a pedra bruta da ficção

Tiago Germano

A literatura é uma arte anciã, e por mais que o seu cânone tenha se renovado e rejuvenescido, novidades que já não são tão novas assim (como a internet) ainda passam ao largo de certas narrativas, sendo associadas aos hábitos e à cultura das novas gerações sem alcançar uma representação mais fiel, que dê conta de sua onipresença no cotidiano das demais.

Não é o que ocorre em “Nenhum Espelho Reflete Seu Rosto”, romance de Rosângela Vieira Rocha que não apenas se desenrola no âmbito virtual, como também é protagonizado por uma mulher de seus 40 anos que se relaciona com um homem mais velho – avaliando o impacto da ferramenta nos valores afetivos de uma geração diferente, educada ainda sob o estro do analógico.

Helen é dona de uma joalheria, herdou a arte de seu pai e é uma apaixonada pelo seu ofício. Sua rotina consiste em administrar sua pequena loja num shopping center e manter uma vida social discreta, em parte cultivada no Facebook, onde escreve postagens inteligentes, algumas de teor político. Uma delas, sobre as avós da Plaza de Mayo, de Buenos Aires, é comentada inbox pelo misterioso Ivan Hernández, um senhor que aos poucos se torna seu amigo virtual e logo um namorado à distância, a outra ponta de uma relação alimentada por contatos telefônicos diários e uma visita ao seu país, com promessas de desdobramentos.

A partir desta visita, Hernández vai se mostrando uma criatura abusiva, que começa a se aproveitar da sua influência sobre Helen para fins egoístas e escusos ao relacionamento. No início do livro, a relação já está terminada, e Helen vai relembrando dos seus episódios turbulentos depois de ser procurada por um psiquiatra que está tratando da nova “vítima” de Hernández – uma paciente que também foi seduzida pelo argentino e prejudicada pelos seus padrões de comportamento.

Em que pesem a fragilidade deste pontapé inicial (que talvez venha a colidir com alguns princípios éticos da psiquiatria) e do fato de os e-mails que Helen troca com Dr. Jorge pouco se diferenciarem, formalmente falando, da narração em primeira pessoa com a qual a autora intercala esta correspondência, Rosângela Vieira da Rocha consegue imprimir um ritmo ágil à narrativa, mostrando pleno domínio dessa estrutura paralela que escolheu para distribuir sua trama.

Próximo ao final do romance, há uma ligeira assimetria da qual a própria autora se dá conta: Helen faz um verdadeiro diagnóstico médico do caso, com longas ponderações sobre o caráter narcisístico de Ivan (o que ela mesma admite talvez não convir, dadas as qualificações superiores do Dr. Jorge – o seu interlocutor – para entender o perfil). O problema teria fácil resolução se este perfil fosse traçado pelo próprio Dr. Jorge, em resposta aos e-mails de Helen – traindo o pacto estabelecido entre os dois, mas conferindo um ganho substancial à narrativa.

Porque o grande mérito, aqui, parece ser mesmo o da pesquisa: Rosângela sabe do que fala quando analisa os meandros da personalidade de Ivan, e mais ainda quando descreve o ofício de Helen – estabelecendo um contraponto interessante entre a profissional que ganha a vida lapidando pedras preciosas e a mulher que, em certo momento, tem a ilusão de estar fazendo a mesma coisa com este homem (que rápido revela seu núcleo feito de um metal de pouco valor).

Como obra, “Nenhum Espelho Reflete Seu Rosto” revela também este minucioso trabalho de garimpar e lapidar as pedras brutas, mas raras, da ficção.

(*) Tiago Germano é autor do romance “A Mulher Faminta” (Moinhos, 2018) e do volume de crônicas “Demônios Domésticos” (Le Chien, 2017), indicado ao Prêmio Jabuti.

Fonte: https://www.goodreads.com/book/show/46361779-nenhum-espelho-reflete-seu-rosto

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