Lembrança memorável

Literatura legível e de bom gosto. Eis o livro realizado pelo escritor e jornalista Beto Seabra: Lembranças de um tempo sem memória (2024). No avanço da composição meditada, o autor entrega-se à “embriaguez do coração”, sem perder de vista as horas textuais doadas com esmero calculado. Reconhecemos, em cada capítulo, uma espécie de arquitetura narrativa doada em blocos informativos, opinativos e interpretativos onde se cria uma sobreposição de escrituras, pois a história do progresso e das transformações sociais, em meio à pulsão estética da linguagem, transforma-se e deforma-se a partir do tempo presente e passado.

A fascinante prosa sobre Brasília tem pouso inventivo no livro de Roberto Seabra, local onde o desenvolvimento da Capital Federal ambienta a história de quatro amigos: Aldair, Milton, Vicente e Nélio. Outras realidades e personalidades, simples ou peculiares, também compuseram os múltiplos enredos que se entrelaçaram numa rede episódica impressionante (“narrativa em abismo”, conforme termo cunhado por André Gide ao se referir às narrativas que contêm outras narrativas dentro de si). Por exemplo, entre o pesadelo da ditadura e o sonho da democracia no Brasil, uma exposição de arte e um livro de recordações passam a se mover por construções e desaparecimentos.

Para despertar sentimentos, incomodar pensamentos e provocar questionamentos, a literatura de Beto Seabra tem a função de desafiar a linguagem e propor um outro olhar para as coisas do dia a dia. Quem sabe sua função não seria, justamente, nos devolver a dimensão do inaudível, do impensável e do intocável, muitas vezes perdida entre deveres e afazeres, entre perdas e ganhos? Este livro Lembranças de um tempo sem memória afirma Beto Seabra como um dos grandes autores do estilo investigativo fantástico. E aqui, Brasília é profecia realizável, carregando a coragem de ser imperfeita, inclusive.

Diante de escolhas plurais, o citado volume nasce do desassossego autoral e experimenta descanso em um lócus territorial privilegiado: o florescimento do amor. No prefácio de suas Fábulas, La Fontaine diz que a alegria não é o que excita o riso. É, sim, um certo encanto, um toque agradável que cabe a todo tipo de assunto, até os mais sérios: “Nossos melhores pensamentos nunca surgem quando estamos relaxados”.

A narrativa de Seabra começa assim e termina assado, com uma declaração de amor saborosa capaz de ultrapassar o núcleo reinante da necessidade investigativa – “Serei seu prisioneiro pelos próximos sete dias”, disse Aldair para a amada Suzana. Os dois, caminhando pela praia de mãos dadas, encerra mais um livro portentoso que celebra o amar como um ato político e o amor como um percurso de intimidade.

 

Marcos Fabrício Lopes da Silva

Doutor e mestre em Estudos Literários pela UFMG.

Comunicador Social formado pelo UniCEUB.

Jornalista e Crítico da Mídia.

Poeta, escritor, professor e pesquisador.

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