Miguel Jorge faz a vernissage de nossas utopias

Por Linaldo Guedes

Miguel Jorge publicou em 2020 um dos melhores romances da cena literária brasileira contemporânea. “Em busca do coração no sábado à noite” (Arribaçã Editora) é uma obra de ficção com um enredo que mistura erotismo, relações amorosas frustradas e o submundo do meio artístico, desse escritor natural de Mato Grosso, mas que fez de Goiás sua morada literária, com dezenas de livros publicados e incursões em outros gêneros artísticos, como o cinema e o teatro, além de vários prêmios conquistados. Diria que é o romance do “desengano”, da busca pela utopia que nunca se realiza.

Segundo Ronaldo Cagiano, no prefácio da obra, “Em busca do coração no sábado à noite” não nos deixa indiferentes como leitores e como parte dessa humanidade, com suas fraturas expostas, “porque um livro verdadeiro é aquele que mergulhando no coração do espanto, desfere um soco no estômago e nos sacode e acorda”.

De fato, catarticamente o livro nos dá várias socos ao longo de suas mais de duzentas páginas. Dividido em vinte paisagens, como numa bela vernissage de quadros realistas, a obra tem vários personagens emblemáticos e com os quais nos tornamos íntimos, tal as fissuras que vamos carregando também em nossas utopias. Personagens como Raul, Délio, Zélia, Zeno, Liuba Mattey, Mimi, Deputado K., Morissa, Escaravello, Comendador Paranhos, July, Mara, Rosa, Matheus, Cianinha, Moreno, Thomas, Clorine Rosa, entre outros, nos mostram a outra face de um mundo que, sabemos, não é só nosso.

Prosa poética da melhor qualidade (afinal, o autor é também um grande poeta), “Em busca do coração no sábado à noite” começa, em sua primeira paisagem, a pintar o cenário de sua história, uma cidade com praça, pequenas ruas, esquinas e a devassidão das avenidas, “um formigueiro dividido entre desejos, apegos, sofrimento”. Délio é o fio condutor desse enredo, um menino-pintor, alvo dos preconceitos do pai, que encontra em Renato seu salvo-conduto para viver nesse mundo em que se joga tudo para debaixo do tapete. Sua mãe tinha como ofício servir ao marido, sem seguir suas pegadas, por falta de energia e coragem. Zélia vivia em seu mundo de submissão, mas soltava as fantasias de um corpo que queria ser festa e não apenas objeto do marido. Como está bem explicado nesse trecho:

“Quando ele a queria, a arrastava para a cama e ela, perturbada, deixava-se arrastar pelos cabelos. Aquilo era uma obrigação? Ou era desejo de agradar ao marido, que perdia a razão, se tornava violento, como se guardasse dentro de si uma coisa amarrotada, um afogamento de raiva, feito corte de navalha. (…) Aquele era um sujeito que ela não conhecia. Permanecia quieta, sem nada dizer, porque ele era o cavaleiro e ela, a potranca arreada, com os arreios para ser montada a qualquer hora”. (pagina 38)

Enquanto Zélia não se liberta de suas dores, Délio vai aprendendo o sentido do silêncio através da borboleta azul. E conta com o esperto Renato para esse desbloqueio mental e artístico. A ousadia de Renato estimulava a timidez de Délio e os dois vão parar na Casa de número 125, na parte alta da cidade. Lugar da burguesia, dos falsos elogios, dos políticos que só vêem o próprio umbigo, das madames que se acham donas de tudo, inclusive dos artistas. Inclusive de Délio e Renato, que aceitam serem usados para libertarem a arte que bate dentro do peito deles. Casa com muitos personagens bizarros e pouca poesia. Deixei-me conduzir por Miguel Jorge a lugares de antanho, semelhantes à Casa 125, onde tudo era permitido, desde que não saisse daquela residência, afinal, é preciso manter as aparências nas colunas sociais dos jornais do dia seguinte.

“Podendo ser facilmente classificado como um romance psicológico – com direito a uma personagem psicanalista ‘estudando’ às outras e a si mesma o tempo todo -, ‘Em busca do coração no sábado à noite’ também mergulha no social da pequena cidade onde é ambientado e dos seus moradores, todos interligados de alguma forma, seja pela miséria ou riqueza e lendas urbanas – também presentes na narrativa”, define Lenilson Oliveira no posfácio da obra. Aliás, como lembra Lenilson, ao longo do texto surgem transgressões de ordem de linguagem, com a recriação de substantivos e adjetivos, a construção de poemas, todos eles enriquecendo a narrativa da obra.

Sim, no arremate o escritor vê a si mesmo e revê o mundo que criou nesta obra tão significativa e de impactante leitura. Autor de contos, poemas, peças de teatro, roteiros para cinema, Miguel Jorge também se afirma como um ficcionista de mão cheia. Um romancista que pinta a realidade, sem esquecer do sonho.

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