No espelho, quantas máscaras?

Por Nic Cardeal*

“A ficção revela a verdade que a realidade obscurece” (Mary Jessamyn West)

Bem sei que muito já foi escrito sobre o livro ‘Nenhum espelho reflete seu rosto’, da escritora Rosângela Vieira Rocha (Cajazeiras: Arribaçã, 2019). No entanto, atrevo-me a ser mais uma, mesmo porque a vontade de escrever sobre livros que me tocam nunca vai embora, até que eu o faça. Não sou resenhista profissional, apenas uma leitora que se atreve a fazer ‘resenhas afetivas’ de livros que amei, eu diria. Como bem diz outra escritora, Stela Maris de Rezende, “quem quer escrever, escreve. Principalmente, se terminou de ler um livro maravilhoso. Um livro maravilhoso escreve outros livros dentro da gente” (in: ‘Esses livros dentro da gente’, Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007, pág. 57). De qualquer modo, ainda que muito já se tenha dito (e escrito) sobre um determinado livro, creio que ao autor sempre será interessante observar impressões diversas causadas por uma mesma obra em distintos leitores – cada qual único em seu modo e perspectiva de ler o mundo.

Pois bem. Terminei a leitura desse livro maravilhoso de Rosângela há alguns dias. Propositadamente resolvi deixar o enredo ‘marinando’ em minha memória. Hoje, por fim, o ‘Espelho’ pediu-me seu ‘retrato falado’, já que, de fato, ele praticamente ‘escrevera’ outro livro dentro de mim. Então, cá estou!

No decorrer da leitura, mastiguei as emoções que o ‘Espelho’ me provocava, tamanha a empatia que sentia pelas angústias da personagem Helen. Cheguei a pensar: ‘teria vivido eu situação semelhante em vidas passadas, se é que estas existiram (existem)? Pois nesta vida estou certa de que não foi!’ Mas isso nem importa, o fato é que preciso mesmo confessar: por vários momentos senti raiva, muita raiva do personagem Ivan, como se fôra eu a protagonista da obra, tão real a sua narrativa!

A autora usa de uma estratégia muito interessante ao traçar a trama deste romance, possibilitando ao leitor momentos de ‘intervalo’ – verdadeiro ‘descanso emocional’ – os quais se intercalam entre as informações prestadas pela protagonista Helen ao psiquiatra e psicanalista Jorge Campos, através de e-mails, acerca do seu relacionamento (virtual e físico) com o personagem narcisista Ivan Hernández, com a finalidade de colaborar na recuperação de uma paciente (Veridiana Abelha) que também se relacionara, mais recentemente, com ele. Nesses ‘intervalos’, Rosângela permite ao leitor uma espécie de respiro para recuperar as forças, tratando então de contar sobre a vida profissional da personagem Helen, em sua joalheria. Helen conhece profundamente a ouriversaria e a lapidação de gemas, é uma artista nata, cujo ofício – e olhar ‘lapidado’ para o conhecimento das pedras preciosas – aprendeu com o pai.

Toda a narrativa se dá na primeira pessoa, Helen ora escreve e-mails ao psiquiatra, contando sobre sua relação amorosa com Ivan, ora narra sobre seu trabalho como designer e fabricante de joias, junto com seus auxiliares, durante o processo de confecção da primeira coleção da sua joalheria.

O prefácio, tão pontual, é escrito por uma psicanalista e professora da PUC/RJ, Dra. Junia de Vilhena: “(…) A violência cotidiana exercida pelo perverso narcísico é silenciosa por ser velada e insidiosa, centrada na questão do poder sobre o outro. O seu sentimento é o de que o ambiente e os outros se mostrarão, mais cedo ou mais tarde, como enganadores, maculados, falsos, dissimulados. É um tipo de perversão no qual o uso do outro como um objeto para si se dá pelo domínio. Trata-se de se valer de alguém, sempre às custas do outro como maneira de se proteger dos conflitos internos colocando nele suas angústias, dores, desilusões e dificuldades (…)” (páginas 10 e 11).

A leitura do livro é extremamente importante nesses tempos áridos, em que relações virtuais se consolidam a rodo – relações líquidas – quase água em estado de vapor – tão vulneráveis, voláteis como o próprio ar. Relações nem sempre verdadeiras, muitas vezes fraudulentas e traumatizantes. O enredo é muito bem delineado: Helen (a joalheira, narradora da história) presta informações para o psiquiatra, por monólogo em e-mails, uma vez que não quer opiniões, reparos ou interpretações sobre Ivan: “(…) Como pode perceber, doutor, não admito diálogo. O que tenho a oferecer é um monólogo. Mas lhe afianço que serei o mais honesta possível com os fatos, os meus sentimentos e as minhas emoções. Se isto lhe bastar, se lhe parecer conveniente, é só me enviar o seu “de acordo” (página 43).

A trama é toda ela tecida num intenso lapidar de um estado bruto a um estado de refinamento – das pedras, das emoções pelas perdas – de um lado, Helen é a artista que desenha, corta, burila pedras preciosas, preparando a primeira coleção da joalheria; de outro, a mesma Helen é a mulher sobrevivente de um relacionamento abusivo, controlador, manipulador, perverso, que ousa buscar forças para transformar o material bruto da sua dor, das suas perdas – da ‘alma gêmea’, da confiança, do amor próprio, da autoestima -, em refinadas energias de esperança na humanidade, no retorno ao convívio social e na possibilidade de novos relacionamentos. Porque Helen necessita retomar o passado com Ivan através das lembranças que precisam ser contadas – e transformadas em molas propulsoras para reanimar a paciente Veridiana da sua letargia pós-traumática.

Quando o psiquiatra responde, concordando com as condições apresentadas, Helen tem plena consciência de que a tarefa das ‘relembranças’ (só ela sabe quantas vezes já lembrou do famigerado “encontro com o demônio”!) será árdua, dolorida, verdadeiro ofício de recortar (até estilhaçar por completo) o material mais bruto que ficou escondido dentro do peito. “(…) Tudo o que eu queria era ter uma máquina de lapidação manual, nesse momento. Gostaria de lapidar pedras durante algumas horas, para me acalmar e me conectar com o instante presente. Quando se está facetando uma gema, nenhum pensamento consegue ir adiante. Não é possível sair do presente imediato, o passado se transforma em algo absolutamente inexistente e não há nenhum futuro à vista. Só as mãos, o disco rodando, e a força do nosso olhar atento. Concluir a faceta no momento certo e passar à seguinte é o único que nos preocupa. O mundo todo fica resumido a isso e nada mais importa. É como se a mente parasse. Somos tomados por uma profunda calma, relaxamos, ficamos esvaziados de pensamentos e conectados com uma força superior e indescritível, sem contaminações de nenhuma espécie. Como ocorre na meditação, mas de uma maneira muito ativa (…)” (páginas 47 e 48).

Helen sabe que precisa voltar ao passado. E lapidá-lo, para que possa continuar na lida da vida, na lida dos dissabores e delícias da vida, das coragens e temores diante da vida. Para que possa ajudar aquela mulher – quantas outras teriam passado pelas ‘mãos’ de Ivan?

Sim, é um livro cuja leitura é imprescindível, urgente, tão urgente quanto a necessidade da própria Helen precisar lembrar, para depois permitir-se esquecer: “(…) Quando comecei a tarefa, não poderia imaginar que a narrativa fosse tão longa. O fato de ter de a materializar, reduzindo-a a um relato em parágrafos, frases e palavras, me pôs novamente diante do que há dois anos tento esquecer. Estou bem melhor agora, é inegável. As cores das impressões sobre aquele período não são mais tão vibrantes e sei que lentamente irão se desbotar. É essa a minha esperança (…) (página 214) (…) Foi como se Narciso tivesse saído dos livros de mitologia e invadido a minha vida, a minha casa, o meu computador, a minha alma. Não o Narciso jovem e belo das ilustrações, indefeso diante de sua maldição, mas um Narciso degenerado, velho, sujo, agressivo na sua declaração de que ninguém no mundo lhe importava de fato, jogando o seu ódio, a sua solidão, a sua indiferença, o seu enfado e a sua desnecessidade na cara dos outros, insolente, obcecado por sua imagem asquerosa, e posando com o queixo bem levantado, os lábios desdenhosos e os olhos baços, vazios” (página 224).

Enfim, não se pode perder a leitura deste livro impressionante, descrito numa trama que vai do encantamento de Helen por Ivan, ao seu completo estranhamento, no final da sua relação (extremamente tóxica) – tema muito atual e mais comum do que se pode supor, em especial nos ambientes virtuais, onde o narcisista perverso tem em mãos todas as ferramentas para camuflar (minuciosa e maliciosamente) sua verdadeira personalidade.

(*) Nic Cardeal é escritora e publicou esse texto em sua página no Facebook em 12.09.2019)

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