O olho de Belize leu: Nenhum espelho reflete seu rosto, da escritora Rosângela Vieira Rocha

Por Mariana Belize*

Uma das funções da literatura durante a sua história é informar. Informar de uma maneira que não está ligada a uma questão meramente jornalística ou histórica, de preocupação apenas com os fatos e com a objetivação destes, seja na linguagem, seja na verificação. Afinal a literatura trabalha nas teias da ficção, que é mais do que o ocorrido, é um encontro, segundo Karlheinz Stierle, entre o fictício e o imaginário.

Estas duas instâncias, o fictício construído a partir do imaginário, o fictício sendo a via de expressão do imaginário, este incapturável. A partir daí é que se tem a ficção e tudo que se desdobra a partir dela, suas estruturas, suas nuances, seus alcances e fundamentos.

Utilizando as referências da orelha do livro de Rosângela podemos entrever o diálogo que a autora nos propõe no livro, a partir de dois elementos: o espelho e a questão do narcisismo. Intrinsecamente ligados pelo mito de Narciso, mas também apresentando variadas leituras e intertextualidades, dando ao mito o apoio e a versatilidade do contemporâneo.

Voltando à uma questão de linguagem, a informação que a literatura se propõe a transmitir aos seus leitores é a partir de uma construção que passa pela esfera do afeto. A literatura, como também outras artes, se separa da plasticidade da notícia, da invalidação da mentira, da corruptibilidade das narrativas históricas. A literatura se propõe a lidar com a linguagem e chegar ao leitor, não sendo patética (ligada ao pathos como um discurso que se constrói sobre a emoção somente para convencer pela retórica), mas carregando em seu bojo um desejo de transtornar o que está posto. Submetendo assim, tanto a linguagem quanto o leitor a uma espécie de abalo sísmico que quebre a zona de conforto sistematizada pelo senso comum.

A zona de conforto que a narrativa se propõe a quebrar é a ideia de romantização de relações abusivas, como as que vemos veiculadas e financiadas pelas editoras sem preocupação com o caráter criminoso que advém disso.

São narrativas construídas a partir de violações emocionais, mentais e físicas embotadas por uma linguagem de clichês, encharcada de um discurso piegas que esconde mal a questão da violência de gênero. Em contrapartida, Nenhum espelho reflete seu rosto se propõe a uma leitura do outro lado dos best-sellers.

Basta olhar no site da Amazon ou em qualquer livraria Saraiva que quiser, e você verá os títulos, capas e histórias que romantizam abuso emocional e físico de mulheres, funcionando como uma educação sentimental mesclada a uma tentativa de fazer o inaceitável parecer uma escolha privada, um contrato entre duas pessoas, sem ligação com um contexto histórico, social, econômico e cultural que favorece a violência de gênero.

“Mas, Mariana, é só ficção!, você está exagerando.”, não. Não estou exagerando. Estou pondo as narrativas em contato com seus tempos, contextualizando-as. Narrativas como Cinquenta tons de cinza e seus derivados, não apenas normalizam ações que, na verdade, são violência de gênero como corroboram uma postura econômica de dominação do homem sobre a mulher, inclusive veiculada na cultura ocidental como propagandas objetificantes do corpo feminino a partir de um discurso neoliberal de libertação e posse de uma escolha que não possuímos na realidade. Além disso, também corroboram no imaginário feminino a aceitação da violência entrecruzada a uma ideia de amor romântico, os dois trabalhando juntos para manter as mulheres violentadas silenciadas inclusive na ficção. Fazem o papel, na literatura, que a pornografia faz no audiovisual. Pense bem que o Brasil é um dos país onde há mais feminicídios, um país que permite o divórcio há poucos anos, num contexto geral, um país que veicula pro exterior uma imagem de suas mulheres como disponíveis ainda, mesmo depois das críticas feitas ao discurso da “mulata-exportação”.

O livro de Rosângela apresenta duas personagens fundamentais para compreendermos a dinâmica feminina nesse contexto. Helen é a mulher que sofreu a violência e está em processo de recuperação da própria vida interior. A paciente que se recusa a falar é a que ainda está mentalmente sob o domínio do medo. A literatura é aqui com suas estratégias, a comunicação possível entre as duas mulheres.

Ler o livro de Rosângela é, portanto, fundamental para compreender os liames psicológicos mais sutis dessa violência, além de trazer uma narrativa dinâmica. A protagonista é uma personagem elegante, de uma linguagem que burila as emoções e transforma-as em cintilantes cristais que facilitam nossos olhos a enxergar através dos véus sociais que protegem a violência sutil promovida pela cultura patriarcal. É ela que fornece cenário e vítimas àqueles seres que são incapazes de empatia.

O afeto que é possível ser criado entre o leitor e a narrativa literária não acontece entre o leitor de, por exemplo, um livro técnico, voltado para a área de psicologia ou psiquiatria, que são áreas que lidam com uma linguagem, com um sistema e um vocabulário que as pessoas que estão fora da área não vão compreender, não vão buscar. Seus dialetos. Como a literatura pode estar em várias frentes, ser utilizada de várias formas, sem deixar de ser arte, tem essa plasticidade e toma para si a função de informar pelo afeto, pelo exercício da leitura.

A autora utiliza a construção de um gênero que é o romance, justamente por ser aberto às estratégias de informação e construção da linguagem, mas também porque tem uma abertura maior para a leitura, trazendo uma narrativa que, em primeira camada, pode ser conforme disse, informativa.

Além disso, a narrativa toma para si uma forma de construção de diálogos que não são marcados por travessões ou aspas, o que transtorna a leitura e é um aspecto interessante na leitura do livro. Não causa prejuízo ao leitor, essa ousadia, dá à narrativa que conta com um enredo contínuo, que podemos enxergar como um traço cinematográfico – uma tomada longa, unindo cenário, personagem e o diálogo.

 

(Mariana Belize criou e escreve no Projeto Literário Olho de Belize, é mestranda em Literatura Brasileira pelo Programa de Letras vernáculas da UFRJ. Formada em Letras – Língua Portuguesa/ Literaturas – da UFRRJ – Nova Iguaçu, escreve resenhas críticas com base nos seus estudos de Crítica e Teoria Literária com base na Estética da Recepção e estudos sobre a relação entre arte e vida. O texto foi acima foi publicado no seguinte link: https://olhodebelize.wordpress.com/2019/08/07/o-olho-de-belize-leu-nenhum-espelho-reflete-seu-rosto-da-escritora-rosangela-vieira-rocha/)

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