O trágico e o sublime em “O coração pensa constantemente”

Por Linaldo Guedes

Ao longo da história, a Literatura dá conta de diversos livros que abordam, de uma forma ou de outra, as relações entre irmãos e irmãs, alguns tendo essas relações como enredo central, em outros apenas como pano de fundo. O mais célebre deles talvez seja “Os Irmãos Karamazov”, de Dostoiévski, que conta a história de três filhos em conflito com o pai. De obras mais recentes, podemos citar, ainda, “Dois Irmãos”, de Milton Hatoum, com a disputa entre dois irmãos gêmeos. Cito, ainda, outro que nem tem a relação entre irmãs como tema principal, mas que em suas páginas se espalham detalhes desse relacionamento entre cinco irmãs, com mais ênfase em duas. Falo de “Orgulho e preconceito”, de Jane Austen, um de meus romances preferido.

Na obra de Jane Austen, Elizabeth Bennet lida com os problemas relacionados à educação, cultura, moral e casamento na sociedade aristocrática do início do século XIX, na Inglaterra. Elizabeth é a segunda de cinco filhas de um proprietário rural. Tem um temperamento forte, sem levar desaforo para casa. O oposto de Jane Bennet, sua irmã mais velha, doce, reservada e tímida. O romance mostra os costumes e a forma de agir das irmãs e da população na pacata cidade fictícia de Meryton. É um romance rico em diálogo, impressões e expectativas criadas e vividas pelas cinco irmãs, com ênfase nas duas citadas acima.

Guardada as devidas proporções, é isso que encontramos em “O coração pensa constantemente”, novo romance de Rosângela Vieira Rocha, obra que vem encantando leitores e críticos com um enredo que fala de sororidade entre irmãs. Com os afetos e desafetos que possam existir nessa relação, de forma lírica, nostálgica, mas também crua, quando o enredo pede, verdadeira. A capa, belíssima, por sinal, é de Luiz Prates e a edição é da Arribaçã.

Rubi e Luísa dividem a cena nas 198 páginas do livro, sempre sob o olhar narrativo desta última. Como bem fala a escritora Maria José Silveira, no prefácio da obra, “Aí estão os carnavais inocentes, os footings na praça de uma cidade sem praça, a ida cerimoniosa ao cinema no final de semana, os bailes. As tagarelices como calcinhas furtadas de um varal, a inesquecível magia de um circo, e as maçãs argentinas embrulhadas em papel de seda roxo”. Tudo isso ambientado na pequena cidade de Inhapim, interior de Minas Gerais.

Esse lirismo de Inhapim, tão leve e nostálgico como o que acontece em Meryton, na obra de Austen, é um recurso muito bem utilizado pela autora para suavizar a trama, que começa de forma tensa, angustiante até, ao narrar o início do pós-vida de Rubi:

 

“Pode parecer lúgubre, mórbido, mas recorrentemente imagino o estado de conservação do seu corpo, se continua íntegro ou se já começou a se decompor. Nesses momentos, sinto uma urgência difícil de ser controlada, uma ânsia de abrir o túmulo, destapar a urna e ver o que está ocorrendo. Que membros ainda estarão inteiros? E o rosto de traços expressivos, ainda intacto? Os braços, arroxeados depois de tantas agulhadas, terão mantido a cor? Os pés, os pobres pés gelados, que tantas vezes massageei durante suas internações, que aparência terão agora? Haverá vermes? Eles já chegaram, famintos, insaciáveis, à procura de sua carne? É estranho pensar nisso, eu sei, mas não tenho o controle total dos meus pensamentos, e essa angústia de querer saber é aniquiladora, não tem remédio. (Esses pensamentos parasitas são mais comuns do que parecem, mas ninguém fala sobre eles, por medo da crítica alheia)”. (pgs. 14-15)

 

É mórbido, sim. Parece até um poema de Augusto dos Anjos, a falar detalhes não usuais na literatura na hora de abordar o corpo de uma pessoa querida morta. Mas Rosângela, de forma magistral, quebra essa tensão já no segundo capítulo, ao falar do aniversário de vinte anos de Rubi.

Há quem prefira simplificar e dizer que é um romance autobiográfico. Fico a imaginar qual texto literário não tem pouco ou muito de referências biográficas de seu autor ou autora. Ora, escrevemos sobre o que vemos, sobre o que vivemos, sobre o que sonhamos. Tudo que escrevemos faz parte do nosso todo, fragmentado em literatura. E o que transforma isso em Literatura é a forma como escrevemos, como narramos. Quem não conhece Rosângela e sua história com Edna, a irmã que serviu de base para Rubi, jamais vai identificar autobiografia no que está escrito em “O coração pensa constantemente”. O livro de Rosângela é literatura de altíssimo nível, com domínio das técnicas narrativas e uma linguagem que sabe dosar muito bem o trágico e o sublime, o humor e a ironia, o afeto e a inveja. Equilibrar tantos sentimentos da forma como Rosângela faz em “O coração pensa constantemente” só é possível para quem tem estilo e capacidade narrativa.

Escrevi nas orelhas do livro que o estilo de Rosângela, de costurar o passado e o presente simultaneamente, prevalece nesta obra. As brincadeiras, as festinhas, os flertes, as ruas do interior fazem contraponto com o mundo adulto ou com os momentos finais da vida de Rubi numa cama de hospital. O título da obra vem do I Ching, mostrando que o pensar além do momento faz sofrer o coração. Afinal, na sabedoria chinesa, pensar é sentir, eis a chave desta obra. Mas também busca a quietude, a serenidade do coração. Uma quietude que mantém-se imóvel quando deve se manter e avança quando o momento de avançar chega. Rosângela avança, nesta obra, em busca da sublimação. Para finalizar, digo sem medo de estar exagerando: é um livro que merece uma bela adaptação cinematográfica, de tão imagético que é.

 

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