Romance de Rosângela Vieira Rocha narra história de um amor que fere e traumatiza

Por Geraldo Lima*
Especial para o Jornal Opção

Todos nós estamos sujeitos a cair na lábia de algum espertalhão ou estelionatário, resultando, comumente, em prejuízo financeiro. Desde que o mundo é mundo, sempre houve aqueles propensos a tirar vantagens por meio da fraude. Está lá, no Antigo Testamento, Livro do Gênesis, capítulo 27: Jacó engana seu pai Isaque, ao se passar pelo irmão Esaú, com o intuito de receber a bênção que estava reservada a este. Mas há uma modalidade de fraude ou estelionato que envolve, principalmente, o desgaste emocional. É o que se dá numa relação amorosa em que uma das partes se entrega cegamente aos caprichos da outra. Nesse caso, a vítima (com mais frequência mulheres) perde o que tem de mais valioso: sua autoestima. Nesse tipo de golpe, além da perda financeira, sofre-se dolorosamente com o trauma emocional. O indivíduo que submete outras pessoas a esse tipo de situação é o que, tecnicamente, chamamos de psicopata, alguém cujo grau de empatia é praticamente zero. Alguém que seduz, tira vantagens e depois abandona sem remorso algum. No romance de Rosângela Vieira Rocha, “Nenhum Espelho Reflete Seu Rosto” (Arribaçã, 263 páginas), temos esse tipo de situação traumatizante narrada pela protagonista Helen, uma mulher em ascensão profissional no mundo da joalheria que, apesar da sua maturidade e lucidez, vê-se envolvida numa relação claramente abusiva.

Rosângela Vieira Rocha disse em entrevista que, para compor essa história, ouviu o relato de várias mulheres que se envolveram amorosamente com o tipo de homem abusador, narcisista, enfim, psicopata. Leu bastante sobre o assunto, sempre buscando dar consistência às informações apresentadas ao longo da narrativa. É a partir, então, do acontecido com outras pessoas e do que há de estudo sobre os casos de psicopatia que ela compõe o retrato, tanto do vilão (creio que podemos chamar assim o sedutor, narcisista e misterioso Ivan Hernández) quanto da narradora protagonista do seu romance, a empresária Helen, também ourives e designer de joias. Procura-se, assim, tanto a justeza dos fatos narrados quanto da composição psicológica dos personagens. A fantasia, nesse caso, cede espaço ao realismo.

Os capítulos alternam-se entre os que tratam da formação profissional da protagonista, como ourives, do dia a dia na joalheria, e os que se apresentam na forma de relato pessoal, enviado por Helen, através de e-mails, ao médico psiquiatra e psicanalista que lhe solicita ajuda, o Dr. Jorge Campos. A ideia é que a história vivida por ela possa ajudá-lo no tratamento de uma paciente que se envolveu também com o mesmo homem com o qual ela se relacionou há dois anos, o argentino Ivan Hernández. Nesta parte, do relato pessoal, o nível de tensão, de suspense e de expectativa apresenta-se muito mais carregado do que nos capítulos que tratam do cotidiano na joalheria. Temos, nesse segmento narrativo, uma trama empolgante, um conflito: lá estão o vilão Ivan, a protagonista Helen e o desenrolar tenso da relação abusiva entre eles.

Ainda que parte da narrativa dê-se de modo diverso dessa do relato pessoal, podemos dizer que esse romance de Rosângela se enquadra (ah, nossa mania de enquadrar tudo!) num gênero que teve seu auge no século 18, o chamado romance epistolar, mas que, modernamente, continuou a ser praticado por grandes escritores, como Lúcio Cardoso (“Crônica da Casa Assassinada”), Alice Walker (“A Cor Púrpura”) e Amos Oz (“A Caixa Preta”). Em “Nenhum Espelho” reflete seu rosto, no lugar de cartas e bilhetes, usados em outros tempos, temos o moderno e ágil recurso do e-mail. Embora Helen se recuse a travar um diálogo com o Dr. Jorge Campos, nos moldes de uma análise, a escrita desses e-mails serve como meio de ela se curar, de purgar o passado sombrio e se livrar, de uma vez por todas, dos sentimentos em relação a Ivan que ainda a assombram.

O universo da joalheria e da ourivesaria nos é apresentado de modo preciso e apaixonado nesse romance da mineira radicada em Brasília Rosângela Vieira Rocha, indo da seleção das pedras preciosas à lapidação das mesmas. Aos olhos da ourives e designer Helen (que herdou do pai a paixão pela joalheria e, da mãe, o hábito de ler e escrever), essa atividade artesanal insere-se no contexto da arte, da busca da beleza pelo apuro técnico e criativo. “A joalheria é mesmo uma profissão de sonho. Em que outro ofício eu poderia sentir essa plenitude, essa alegria por criar a beleza? Sim, existem outros tipos de beleza, mas nada que se compare à dessa arte milenar” (página 175). É esse estado de entrega total à sua criação que nos desperta empatia em relação à protagonista, que, de outra maneira, poderia se constituir em um ser vazio, superficial, ligado apenas a um mundo de luxo e ostentação. Helen é inspirada e generosa, aberta ao encantamento e ao amor, e essas são características que vão, infelizmente, facilitar sua sedução por parte do narcisista Ivan. E a experiência será traumática: “Dolorida e contraditoriamente fortalecida, nunca mais fui a mesma. Ninguém sai incólume do convívio com um perverso, a subespécie humana mais letal que existe”. [pág. 263] Seguir o seu doloroso relato, que se dá ainda num ato de extrema vontade de ajudar o outro, é algo que nos humaniza e alerta para os constantes perigos que nos rondam. Sem complicações narrativas, com linguagem enxuta e direta, Rosângela nos convida a mergulhar na terrível história vivida por Helen, que é, em suma, a história de frustração e dor vivida por milhares de mulheres mundo afora. É, de certo modo, uma história de superação e compartilhamento dessa superação. Uma história que nos ilumina e nos inspira a continuar vivendo apesar do mal que teima em nos abater.

(*) Geraldo Lima é escritor, dramaturgo e roteirista.

(Texto publicado no Jornal Opção: https://www.jornalopcao.com.br/opcao-cultural/romance-de-rosangela-vieira-rocha-narra-historia-de-um-amor-que-fere-e-traumatiza-208096/?fbclid=IwAR0oha-yRrVE9B-O47IvUtkVLKNxG9ZN2Z9BQs0HdSRZ5MeJbDZVftraURo

Deixe uma resposta