Solha: a história da Humanidade num poema

Por Adelto Gonçalves*

 

I

 

Depois de publicar, em 2019, Vida Aberta (São Paulo, Editora Penalux), o romancista, poeta, cordelista e ator de teatro e cinema W. J. Solha (1941) chega com 1/6 de Laranjas Mecânicas, Bananas de Dinamite (Cajazeiras-Paraíba, Arribaçã Editora, 2021), ao quinto volume de seu Tratado Poético-Filosófico, de seis que pretende publicar. Trata-se da continuação de um longo poema em versos livres, um discurso utópico, em que procura reconstituir a história da Humanidade e seus muitos saberes e numerosos fracassos.

Poeta que sempre operou a anarquia nos gêneros, espécies e formas literárias como maneira de se libertar do peso da tradição que sempre impediu que se fizessem voos mais altos e abertos para a intuição, Solha volta a fazer a junção do popular com o erudito, exigindo de seu leitor um conhecimento profundo não só de Literatura e Filosofia como de fatos que marcaram a vida no planeta, com citações que vão desde o Evangelho de João até Machado de Assis, passando por Descartes, Santos Dumont, Frida Khalo, Salvador Dali, Mozart, Caravaggio, Bela Bartok, Shakespeare, Charlie Chaplin, Freud, Stendhal, Tolstoi, Darwin, Gilberto Gil, Gal Costa, Ivete Sangalo e muitos outros nomes representativos da cultura mundial e nacional.

Apesar do individualismo anárquico que repudia o metro, o poeta não deixa de manter o recurso à rima, embora se saiba que a poesia não se confunde com o verso, que, acima de tudo, pode exprimir qualquer tipo de conhecimento. Como se pode ver neste excerto em que compara a modernidade do Burj Khalifa, de Dubai, o mais alto edifício do mundo, um ícone global, ao mundo da pobreza da tapera, ou seja, do casebre que servia de pouso para os tropeiros e demais viajantes no século XVIII e que ainda está presente por este Brasil afora:

 

“Discretazinha, / a… divinity… age… como quando  fecha a moleira dos bebês, / dá forma aos seios / da mocinha, / cuida da rima – tipo pícaro – de ácaro… com Ícaro: o mito sem / rito, um dos arranjos com que ela “disse” … aos marmanjos / que um dia voariam / … como anjos / e que ao arquétipo Babel / devemos, / no passado, o Empire State, / tantas vezes, / já, / superado, / agora pelo Burj Khalifa, / O / arranha-céu, / que se estira em meio a um mundo de tapera, / muquifa / e, / ainda assim, / de aluguel, / o no saber, sabiendo – como disse o Juan de la Cruz – a nossa sciencia / … trascendiendo, / sonegando-nos, por enquanto, luz”. 

 

II

 

Embora este livro não seja de fácil definição, trata-se de obra que, na opinião do contista, novelista, poeta e crítico literário Ronaldo Cagiano, hoje radicado em Lisboa, enquadra-se na “reduzidíssima família de obras demiúrgicas, pois contém uma espécie de memória ancestral da civilização nesses tempos e nesse mundo tão pouco civilizado e atravessado, distopicamente, por uma pandemia”. Diz mais em seu texto de apresentação do livro: “Esse passeio onírico por múltiplas instâncias artísticas e míticas é um repositório de um inconsciente individual e coletivo em que os signos de uma íntima perplexidade constituem o farol para percorrermos as procelas que tanto nos afetam na contemporaneidade”.

Já o editor Linaldo Guedes, no posfácio, observa que na poesia de Solha há “algo de místico” não no sentido religioso, mas no sentido sobrenatural, comparando-a com o teto da capela Sistina, construído pelas mãos de Michelangelo. “Sua poesia não precisa de tradução ou notas de rodapé, como ele quis me fazer ver uma vez. Isso porque sua poesia não se explica pela leitura sistemática dos humanos, nem em novos livros ou alfarrábios preciosos. Sua poesia traz o mesmo mistério da Capela Sistina”, reforça.

De fato, na poesia de Solha, as imagens valem por si próprias, ficando o pensamento inerente a elas, enquanto o fulcro do poema é a tentativa de reconstruir a história do homem na Terra, como se pode intuir deste trecho: “Jacquard, / francês, / em 1804, / ao criar… os cartões perfurados, / que tornariam os teares automatizados, / jamais poderia imaginar que, / cinquenta anos mais tarde, / o britânico Boole – com igual alarde – criaria o código / binário / e que, / vinte e seis anos depois, / calcule!,  / o americano Hollerith usaria a evolução dos dois / para enfrentar a complexa  operação / do recenseamento da nação, / sem – com isso – supor… que estaríamos a caminho do / computador”.

 

III

 

Nascido em Sorocaba, São Paulo, Waldemar José Solha radicou-se em João Pessoa, na Paraíba, a partir de 1962. Diz que renasceu em Pombal, no Alto Sertão paraibano, onde, no ano seguinte, instalou-se profissionalmente como funcionário do Banco do Brasil e começou a fazer literatura, teatro e cinema.

Em 1974, ganhou o Prêmio Fernando Chinaglia com o seu primeiro romance, Israel Rêmora (Editora Record, 1975). Com Canga (Editora Moderna, 1978; Editora Mercado Aberto, 1984), alcançou o segundo lugar do Prêmio Caixa Econômica de Goiás, em 1979. Com Batalha de Oliveiros (Editora Itatiaia, 1989), ficou com o Prêmio do Instituto Nacional do Livro (INL), de 1988.

Publicou ainda os romances A Verdadeira História de Jesus (Ática, 1979); Zé Américo Foi Princeso no Trono da Monarquia (Codecri,1984); e Shake-up (Editora da UFPB, 1997). Com o romance Relato de Prócula, ganhou o Prêmio Incentivo à Literatura da Fundação Nacional de Artes (Funarte), em 2007.

Na área de poesia, é autor também de Trigal com Corvos (Recanto das Letras, 2004), poema longo publicado pela Editora Palimage, de Portugal, também em 2004, Prêmio João Cabral de Melo Neto de 2005 como melhor livro de poesia; História Universal da Angústia (Bertrand Brasil, 2005), coletânea, Prêmio Graciliano Ramos de 2006 da União Brasileira de Escritores (UBE), seção Rio de Janeiro, e finalista do Prêmio Jabuti de 2006; e Deus e outros quarenta problemas (Penalux, 2015).

Além de romancista e poeta, teve várias passagens pelo teatro como autor e diretor de peças e ator. Escreveu textos para “Cantata Pra Alagamar”, música de José Alberto Kaplan, em 1980, e “Os Indispensáveis”, para música de Eli-Eri Moura, apresentada em João Pessoa, em 1992. Trabalhou como ator nos filmes O Salário da Morte, dirigido por Linduarte Noronha e lançado em 1970; Fogo Morto, dirigido por Marcus Farias; Soledade, dirigido por Paulo Thiago (ambos de 1975); A Canga, de Marcus Vilar, em 2001, e Lua Cambará, dirigida por Rosemberg Cariry, em 2002. Ganhou o prêmio de melhor ator coadjuvante do Festival de Cinema de Brasília, em 2021, por sua participação em Era uma vez eu, Verônica, de Marcelo Gomes, e o Prêmio Guarani, no Festival de Cinema de Porto Alegre, por sua interpretação em O Sol ao Redor, de Kleber Mendonça Filho.

É autor dos painéis “Homenagem a Shakespeare”, de 1997, em exposição permanente no auditório da Reitoria da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), e “A Ceia”, de 1989, no Sindicato dos Bancários da Paraíba.

 

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1/6 de Laranjas Mecânicas, Bananas de Dinamite – o quinto de seis tratados poéticos-filosóficos, de W. J. Solha, com apresentação de Ronaldo Cagiano e posfácio de Linaldo Guedes. Cajazeiras-Paraíba: Arribaçã Editora, 86 páginas, R$ 45,00, 2021. E-mail: arribacaeditoria@gmail.com Site: http://www.arribacaeditora.com.br

 

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(*) Adelto Gonçalves, jornalista, é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo – 1788-1797 (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br

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