Solha e seus tratados poético-filosóficos

Por Joca da Costa

 

Waldemar José Solha é um poeta paraibano. Ele já foi pintor, ator de teatro e cinema, escritor de peças de teatro e libretos operísticos, ensaista, romancista, novelista, cordelista, além de outras coisas mais, tudo isto sendo/estando bancário. E já foi paulista, de Sorocaba.

Polímata, polígrafo, self-made-man, Solha é homem de muitas qualidades. É como o peixe que lhe dá nome: muda de forma, características e identidade sem deixar de ser ele mesmo. E suas características pessoais vazam-lhe da fronte para as obras.

Solha poeta tem escrito e publicado nos últimos anos seis longos poemas dos quais possuo quase todos e que me parecem ser um projeto literário elaborado para responder à única questão filosófica que me soa relevante: “viver vale a pena?”.

E isto significa discutir o sentido da existência.

Nestes poemas que sub-titula como “tratados poético-filosóficos”, ele projeta as possibilidades de resposta a esta questão nas interações e trocas humanas, afirmando o sentido interativo da existência humana como o único possível. Neles, o sentido da existência são os Outros e seus impactos no Eu, na contramão da moderna tendência irracional de estabelecer a própria identidade pela distinção, negação ou mesmo destruição do Outro.

Num evidente paradoxo, Solha também afirma sua/nossa identidade como unívoca por afirmar o “eu sou” como a forma possível de conhecimento do mundo. O “Outro” é também “Para Si”.

Tal paradoxo faz sentido psicanalítico, uma das fontes da escrita solheana: o Outro não é projeção nem introjeção mas mundo simbólico onde o Eu se constitui e se instala. E faz sentido na mente judaico-cristã, outra de suas fontes mesmo que num sentido negativo: Jeová identifica-se a Moisés e ao faraó do Egito como “Eu Sou”; e a responsabilidade pessoal pelos atos é o seu valor maior, a Religião como Ética, ainda que sofismado pelos cristãos.

O primeiro de seus poemas, “Trigal com Corvos”, é o mais denso, hermético e psicanalítico. É também o mais biográfico, embora me pareça que nele o autor não tinha ainda uma consciência plena do seu projeto poético-filosófico e de suas vicissitudes.

Dos demais que conheço, percebo esta consciência insinuando-se gradualmente ao longo dos poemas editados. Parece-me que, enquanto seus aspectos descritivos e biográficos tornam-se cada vez mais epidérmicos, seus aspectos analíticos tornam-se cada vez mais medulares e fundantes, de modo a permitir ao autor e ao leitor uma teoria do humano destilada a partir da experiência mundana, o mundo real e o mundo sensível fecundando-se na construção da consciência do existir. Consciência como costura do mundo “duro”, objetivo, atos e fatos, e do mundo “mole” (soft), subjetivo, palavras e suas semânticas.

De tal forma, o sexto e último poema editado, “O Irreal e a Suspensão da Credulidade”, pareceu-me o menos “hermético”, ou melhor dizendo, o mais descritivo e menos metafórico e “simbolista”, embora igualmente analítico. Analogamente ao que se dá na terapia psicodinâmica, seu processo de escrita torna o que nele é produzido e evocado cada vez mais simples e claro. A consciência a produzir o milagre da Consciência.

Versejar é por um método e suas técnicas a serviço de uma Forma. Embora o saiba bem, Solha o subverte, colocando a Forma a serviço do principal processo poético que usa, o Fluxo de Consciência. Daí resultam textos surpreendentes e personalíssimos, versos reinventados que nunca se repetem, montados sobre inesperados e irregularidades como as da vida.

Neles, vê-se ritmo sem precisar nem prescindir da rima. Vê-se mais palavra que imagética. Vê-se semântica como alma da poética. E sobretudo os rastros do que se viveu. Rastros que são como mapas de uma Estética que se faz Ética e dela se alimenta, como num mantra.

E disciplina, muita disciplina. E suor, muito suor. Trabalho humano, enfim, trabalho duro. E invento.

Mesmo que seja este invento o espanto, o olho deslumbrado, a dor, a incredulidade, a transcendência e o encantamento. E neste invento, uma Forma poética única, relato como parte da Alma, o copo vazio e o ar que o torna pleno sendo a mesma matéria, verso como parágrafo e parágrafo como verso.

Poemas prosaicos em prosa poética, na combinação nada sutil de versos-frase e palavras-verso, em tempos rítmicos e tamanhos diversos, estrofes ora livres e brancas ora rimadas. Impulso e cálculo num fluxo narrativo quase sempre apolíneo embora algumas vezes dionisíaco. Quase sempre caçoando do formal embora sem nunca desprezá-lo.

Na poética solheana, relato é também análise, numa rebuscada fortuna e filosofia da Cultura que, de pessoal a coletiva torna-se sua e nossa, mais que humana, afinal.

Nela, o autor é poeta e profeta. Nela há vate e vaticínios cuja matéria-prima é o passado e o futuro. Nela vê-se o autor em busca de significar a existência humana na própria matéria sensível e bruta da experiência. Como um pré-socrático. Como um profeta do Antigo Testamento, austero e trágico.

Como se a mesma Vida que nos dá a angústia básica da existência fosse também seu remédio, sua expiação. Como se ele mesmo, ateu, funcionasse como um crente, à procura de transcendências no mundo, na matéria sólida. A transcendência das coisas em sua representação, a Imagem e a Palavra. Um crente à procura de imanência possível posta nas imagens e palavras que testemunham a Impermanência do Mundo e a Permanência do Afeto. Um esteta. Um estóico. Um soldado em plena carga de infantaria (alguém ainda saberia o que era isto?) contra a angústia do existir e a fragilidade do Afeto.

Poesia e prosa sendo quase o mesmo, tão pequenas as diferenças.

Mas enquanto o Solha prosista emula o ator, sua prosa fingindo mundos e papéis possíveis neles desempenhados, o Solha poeta emula o pintor, descrevendo e representando os mundos e o real onde ele (e qualquer outro, por artes vicárias) fantasia sua existência como forma de lidar com a angústia inescapável a este real.

Solha faz Poesia como biografia. E auto-análise, ainda que à moda de Freud, aquela na qual há momentos em que um charuto é apenas um charuto. Daí Solha dizer que escreve porque precisa. Precisa entender e registrar a vida.

Caetano Veloso diz, num dos versos mais belos da MPB: “eu sou o cheiro dos livros desesperados”. Na Bíblia, o espírito do Eterno diz ao profeta Jeremias: “toma um rolo de livro e escreve”; e depois o profeta confessa ter comido o livro. Outro velho profeta, Ezequiel, também confessa ter comido o livro. No Apocalipse, um anjo ordena a João: “toma e come o livro”, que ao final lhe sabe doce na boca e amargo no ventre.

Solha nos convida a “comer” seus poemas. Embriagar-se em seu perfume. Desesperar-se em o seu desespero. E saber então o doce amargo da construção da esperança. Seu projeto poético e filosófico é o fruto desta esperança.

Porque a Filosofia na poética solheana é a filosofia da condição humana e da Cultura, o projeto filosófico de Solha é definir o Homem como um deus impotente submetido a um script definido pelo Acaso, este sim a verdadeira Potência do Universo.

E este script seria o Encontro, a Troca, a possibilidade de permanência do mundo pela permanência dos outros em mim. A única Eternidade possível como sendo a da fátua existência humana dada na permeabilidade da Cultura.

Afinal, se ser poeta é ser profeta, o é não por vaticinar um futuro mas por, com a lanterna na popa, como diz Coleridge, iluminar o já navegado para significar o fluxo do presente e assim tornar possível algum futuro.

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O livro “O irreal e a suspensão da credulidade: Sexto tratado poético-filosófico”, de W. J. Solha pode ser adquirido AQUI

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