Um livro hermético?

Por Milton Marques Júnior

 

Tomei uma decisão de não me meter em polêmicas, porque, já há algum tempo, as considero, além de infrutíferas, desgastantes. Não sei o que é pior para o nosso espírito. Decidi, no entanto, escrever, mais uma vez, sobre o mais recente livro de Solha, 1/6 de laranjas mecânicas, bananas de dinamite, não para polemizar, mas para discorrer um pouco sobre o seu livro ser ou não um livro hermético.

O que é hermético? O termo é originário do deus Hermes, considerado na mitologia grega uma divindade noturna, dos descaminhos e das palavras enganadoras. Além desses atributos, Hermes é o mensageiro de Zeus e o condutor das almas ao Hades, o que lhe valeu o epíteto de psicopompós. Quando Hesíodo, no poema Trabalhos e dias (século VIII a.C.), fala da criação de Pandora por Hefestos, a mando de Zeus, como um presente aos homens, o poeta mostra que o deus faber constrói esse ser ruinoso, dotando-o com os vários dons dos deuses, o que justificou o seu nome – Pandora, presente de todos. Dentre os vários presentes, que tornam Pandora bela, sedutora, desejada e impudente, não falta o de Hermes, colocando-lhe no seu seio as mentiras, as palavras enganadoras e o caráter dissimulado.

Por ser um enganador nato – ainda criança enganou Apolo, enredado pela sua conversa astuciosa, conforme podemos ver no Hino homérico a Hermes –, esta divindade está sempre à procura de esconder a clareza das suas intenções, o que ajudou a caracterizar as expressões que não se entendem de modo claro. Além disso, Hermes, por conhecer os caminhos misteriosos e obscuros do Hades, guiando os mortos, como os pretendentes da Odisseia, ou os vivos como Hércules, na sua busca a Cérbero, acaba por se tornar um deus a quem se dedicavam cultos místicos, cujos mistérios só deveriam ser conhecidos pelos iniciados. Daí o sentido de hermetismo.

Ora, a literatura tem como característica principal dizer nas entrelinhas, com segredos que só se revelam aos iniciados em seus estudos, mas está longe de ser hermética. Nem sempre o que vemos, o que lemos, o que ouvimos, se nos apresenta com clareza. Há uma dissimulação, um jogo de esconder, que está na base do conceito da ποίησις, no seu sentido mais puro de criação, de acordo com o que nos diz o vocábulo grego. A primeira formulação do conceito de poesia, no mundo ocidental, que já se atrela ao de verossimilhança, encontra-se na Teogonia de Hesíodo. As Musas, que transformam o pastor em poeta, afirmam com todas as letras que “sabem dizer muitas mentiras semelhantes aos fatos” (verso 27). É da natureza da criação literária, portanto, esconder, insinuar, deixar nas entrelinhas, criar um texto que precise ser desvelado. Em última análise, dissimular para dizer verdades.

Para seguir adiante, precisamos fazer a diferença entre apreciar e conhecer. Sentir a arte ou receber a emoção do texto literário está ao alcance de qualquer pessoa. Ninguém precisa conhecer arte para gostar ou desgostar dela. Do mesmo modo, a literatura pode agradar ou não ao leitor, porque o que importa para a arte não é o conhecimento, mas a estesia, essa sensação, essa emoção que sentimos, para o bem ou para o mal diante do que vemos, lemos, ouvimos. Em suma, não precisamos entender de arte para apreciá-la ou não. Precisamos apenas senti-la. E expressar o que sentimos, sem um conhecimento crítico do que recebemos é opinião, é doxa, e, embora não constitua crime, a opinião deve ser colocada no seu devido lugar.

Para se fazer um discurso sobre a arte, no entanto, e, mais especificamente, sobre a literatura, precisamos conhecer os seus mecanismos, precisamos de um saber crítico, que nos ajude a entender o texto como uma estrutura, cujos sentidos estão interligados. Necessitamos de um olhar armado criticamente, para entender como o texto foi construído. É isto que dá ao crítico os instrumentos necessários para ele descontruir o texto e depois reconstruí-lo, obedecendo às estruturas explícitas e, sobretudo, às implícitas. Em outras palavras, para apreciar a arte, a doxa é suficiente; para procurar entendê-la, precisamos da episteme. Platão já definiu isto, há 2500 anos, no diálogo Íon: a opinião, que pode surgir de uma inspiração, é insustentável; o conhecimento é construção. Episteme (ἐπιστήμη) é, literalmente, colocar algo em pé, sobre alguma coisa. Assim é o conhecimento, ele precisa estar bem à vista de todos, quando devidamente explicado.

Quando nos referimos à literatura, ainda que um texto nos pareça muito claro, muito denotativo, devemos sempre considerar a existência de uma construção conotativa que precisa ser descoberta. Penso sempre no capítulo “O Mundo Coberto de Penas”, de Vidas secas. Fabiano vê a revoada das arribaçãs e tenta matar algumas para comer, quando as aves descem a um bebedouro. De repente, ele se lembra do que dissera Sinha Vitória: “Aquelas excomungadas levavam o resto da água, queriam matar o gado”. Fabiano acha que ela enlouqueceu. “Um bicho de penas matar o gado! Provavelmente Sinha Vitória não estava regulando”. Quando ele as vê bebendo as últimas águas, ele descobre que sem água os bois morrerão. A fala de Sinha Vitória, de repente, ganha sentido, revelando a Fabiano que ela “tinha muita coisa no miolo”. Para nós leitores, a partir do raciocínio de Sinha Vitória e depois do de Fabiano, o título acaba ganhando um novo sentido: o mundo coberto de penas não diz respeito só às penas denotativas que cobrem o corpo das arribaçãs e, de modo geral, dos pássaros, mas às penas conotativas, do sofrimento por que, mais uma vez, a família vai passar, diante de nova seca que se avizinha. É preciso, portanto, saber ler o que está por trás ou por baixo do texto que temos diante dos olhos.

É neste momento que entra o horizonte de expectativa do leitor. O conceito de “horizonte de expectativa” (horizon d’attente) foi criado por Gérard Genette, num livro excepcional para a crítica e para a análise literária, cujo título é Palimpsestes (Paris: Seuil, 1982). Nesse livro, Genette vê o texto literário como um palimpsesto, cujas leituras vão descobrindo as várias camadas superpostas de que o texto é constituído. Quanto maior o universo cultural do leitor, maior o número de camadas que ele poderá descobrir em um texto e maior será para ele, leitor, a compreensão de que a literatura se alimenta de literatura e de muitos outros saberes, caracterizando-se como uma transfusão perpétua entre textos e os suplantando a todos, numa transtextualidade. A literatura se torna então um dos componentes essenciais dos vasos comunicantes do universo cultural ou como diz Solha, dando uma chave de decifração a seu leitor:

 

“cada coisa,

simples ou complexa,

a nos levar,

o tempo todo,

a outra,

conexa,”

 

A partir daí, portanto, podemos dizer que o grau de hermetismo de um texto é inversamente proporcional ao horizonte de expectativa de cada leitor. Para um leitor comum, que busque apenas apreciar Augusto dos Anjos, muito desse poeta poderá parecer hermético. Para quem se dispôs a estudar a evolução da espécie e as doutrinas espiritualistas, o hermetismo decai substancialmente e o que se via como mera linguagem cientificista, torna-se conceito científico devidamente adequado ao texto, porque transformado pela criação poética. Claro que nem tudo em um texto ou numa obra de arte pode ser explicado, mas é porque nos faltam ferramentas para isto. Quando elas forem descobertas, as explicações surgirão.

A competência do autor começa na criação e esbarra na publicação. Depois ela pertence aos leitores. O autor é como um Deus que cria e vê sua criatura se rebelar, disposta a não mais lhe pertencer. Retornando ao livro de Solha, vemos que este escritor joga com o seu horizonte de expectativa na construção de sua obra, a partir de um olhar múltiplo, inquieto, fragmentado, de que se constitui o seu universal cultural, olhar cujo resultado é um texto harmônico que fala de vida, de arte, de criação, de ποίησις, enfim. A transfusão dos estilhaços desse vasto mundo cultural causará agrados e desagrados aos que o veem apenas com os olhos da apreciação. Aos que o leem com os olhos da crítica, o texto poderá causar agrados e desagrados, mas estes deverão ser explicados com a própria estrutura do texto, cuja compreensão depende do horizonte de expectativa de quem o analisa e o interpreta. E agradando ou não, o crítico jamais poderá dizer que o texto não é impactante, com seu ritmo alucinante, as suas rimas pouco convencionais, o universo abrangente cultural de que ele se nutre.

Vejamos um exemplo, entre tantos. Observemos a capa do livro. Capa também é texto. A multiplicidade de alusões, que vamos encontrar no poema, já começa na capa, numa referência ao livro/filme Laranja mecânica. Existe um cesto laranja com um boneco segurando algumas bananas de dinamite, cujo estopim foi aceso. Um dos olhos do boneco parece uma roda dentada, mas lembra também um dos olhos do personagem Alex, cujo cílio postiço o destacava do outro olho, dando-lhe um aspecto cínico e malévolo, muito bem interpretado por Malcom McDowell. Percebemos, então, que se cria um pacto tácito com o leitor, que fica na expectativa de encontrar dentro do livro, ao longo do poema, um texto explosivo, como o filme, segundo a mecha acesa insinua. A polissemia do título/capa se expande, quando podemos ler 1/6 e também vermos um cesto… Completa-se, assim, o pacto com o leitor, que deverá encontrar no poema o que a sua primeira apresentação, o título/capa, sugere.

Tudo se encaixa, portanto, num jogo de intenções que funde vários caminhos artísticos, de modo a desaguar em uma nova criação, cujo entendimento para mais ou para menos depende do horizonte de expectativa do leitor. Acrescento, ainda, que o leitor possuir um horizonte de expectativa limitado não é demérito. Todos nós somos limitados em algum campo do saber. Eu mesmo desconheço música, apesar de muito apreciá-la. Ignoro completamente o que seja um lá menor.

Esclareço, enfim, que posso até estar enganado, no que diz respeito às intenções do autor, mas não com respeito ao que a estrutura do texto me apresenta, tendo em vista que a competência do autor começa na criação e esbarra na publicação. Depois ela pertence aos leitores. O autor é como um Deus que cria e vê sua criatura se rebelar, disposta a não mais lhe pertencer. E isto é bom, pois o texto faz o seu próprio caminho polissêmico, multívoco, cheio de sentidos novos a cada leitura. Quando o autor quer dizer como se deve ler o seu texto, ele perpetra o maior dos crimes: mata a sua criação e a sua pluralidade. A leitura do autor é apenas uma das muitas possíveis, nem sempre a melhor.

Enfim, trata-se de um livro hermético? Não. Diria que de difícil leitura, a exigir do leitor conhecimentos, cuja busca poderá lhe causar uma fruição sem conta. Solha, no entanto, deixa pelo caminho as chaves para o entendimento de seu poema:

 

“e isso devemos a livros… fáceis… que nos criam mistérios,

enquanto os que os decifram,

… sérios.

… permanecem distantes

nas estantes,”

 

Entre livros fáceis e sérios, os mistérios que se criam podem ser decifrados – perceberam que criam e decifram estão, pela vontade do autor, em itálico? –, basta tirá-los da estante e mantê-los por perto, em leituras constantes, possíveis de nos levar à decifração. Ao leitor, a pergunta inquietante de Drummond a quem quer penetrar no reino das palavras: trouxeste a chave?

 

Milton Marques Júnior é Doutor em Letras, professor, escritor e membro da Academia Paraibana de Letras

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