Amores e desastres amorosos mediados pelas redes sociais

Por Krishnamurti Góes dos Anjos*

Na bolinha de barro em que vivemos, cada vez mais conectada e midiatizada, a facilidade maior de conectar-se à outras pessoas enseja a que o indivíduo possa se relacionar mais facilmente, porém, sem um envolvimento emocional, sem a ideia de um compromisso, visto que, com apenas um clique, podemos facilmente rejeitar uma pessoa. Que beleza hem? Com apenas um piparote, adeus! As redes possibilitam algo que no ambiente real é um obstáculo porque já não possuímos fronteiras e as noções de espaço-tempo são dissolvidas, podemos inclusive nos comunicar com diferentes pessoas, em diferentes locais e até com fusos horários diferentes. Pulamos etapas e, com efeito, a tecnologia propicia uma relação ambígua. Ao mesmo tempo em que dissolve as fronteiras geográficas, ajudam a tornar as relações ainda mais frágeis. E pulamos para outro conceito que traduz muito bem os equívocos a que nos sujeitamos. Estar próximo de alguém não significa estar junto e sim estar online. Mas não é por conta das redes sociais, (não necessariamente), que as relações que poderiam atingir elevados padrões de amor, foram rebaixadas. O conjunto de experiências às quais nos referimos com a palavra amor expandiu-se muito com o tempo. Noites avulsas de sexo hoje são referidas como “fazer amor”. Daí se conclui que, mais uma vez, a problemática não está propriamente no meio utilizado para a conexão mais sim no significado que a ela atribuímos.

O modelo de ‘amor’ hoje pula etapas e vamos cegamente para a busca de uma satisfação pessoal idealizada como diversão sem limites e consumo do outro tendo como grande preocupação aproveitar o momento presente sem preocupações com futuros. Está valendo o maior apreço por si mesmo e pelos próprios interesses, sem levar muito em conta as demandas do outro por atenção e cuidado. E paralelamente se incute nas mentes que compromisso amorosos implicam em diminuição de liberdade. Uma confusão terrível onde poucos se satisfazem em meio a uma baderna terrível de sentimentos. Numa tática do mínimo esforço, contatos amorosos são rapidamente estabelecidos assim como podem ser rompidos facilmente. Nessa facilidade toda podem ocorrer verdadeiros desastres amorosos.

“Nenhum espelho reflete seu rosto”, da escritora Rosângela Vieira Rocha, é um romance que aborda uma situação limite que foi gestada no Facebook. A Rede Social (talvez a mais utilizada em todo mundo), que permite e incentiva a amizade entre as pessoas. Helen é uma mulher de 40 anos, lutando desesperadamente para manter uma pequena joalheria que abrira depois que seus pais morreram num desastre de automóvel. Uma mulher guerreira e; solitária. O romance tem seu ponto de partida em um telefonema que Helen recebe de um psiquiatra, que tem em sua clínica uma paciente internada em um estado deplorável. Não quer comer, não fala com ninguém, não se submete a qualquer tratamento clínico e não há maneira de se saber como ou porque teria chegado a esse estado. Por informações prestadas pela filha da enferma, fica-se sabendo que Helen teria tido num passado mais recuado, um relacionamento amoroso com um certo Ivan Hernández, um sujeito argentino que teve mais recentemente, ligações afetivas com a doente. E então o médico procura e encontra Helen a lhe pedir ajuda no sentido de encontrar o paradeiro do tal sujeito que por sua vez poderia prestar algum auxílio no tratamento médico. Em casos tais é imprescindível saber do histórico do paciente.

A informação prestada ao médico realmente procede e a trama do romance se desenvolve numa alternância do foco narrativo entre o desenrolar da vida de Helen que segue no presente (tentando vencer as vicissitudes da vida e o trauma da relação que teve com Ivan), com as informações que vai prestando ao médico através de e-mails. Observe-se como a narrativa nos deixa perceber como tais casos começam. Depois de duas ou três semanas de contatos virtuais com o argentino, seguiram-se telefonemas, e: “logo passei a receber dois telefonemas diários de Buenos Aires. Um menos longo, geralmente pela manhã, e um à noite, já tarde. Chegamos a falar durante mais de três horas seguidas. Eu só dormia na alta madrugada, exausta. Ficava muito excitada com as conversas e demorava demais a conciliar o sono.” Vejam onde uma coisa assim vai levando, sobretudo porque, “Ivan adivinhava meus pensamentos e minhas necessidades. Seus pontos de vista sobre os fatos coincidiam com os meus de maneira tão precisa, tão exata, que esses telefonemas me provocavam uma sensação de magia, de encantamento, de (quase) hipnose.”

O que parecia a princípio um grande encontro de alma gêmea foi perdendo seu brilho logo na primeira viagem dela a Buenos Aires onde encontrou um homem de meia idade, sem horizontes, morando sozinho em um apartamento minúsculo, com várias relações anteriores que resultaram em três filhos e o pior, de um minuto para outro se comportava como outra pessoa. Já era tarde. Helen em meio à uma situação então sedutora demais, não se deu conta de raciocinar com clareza no rumo que estava dando à sua vida. Quando o ser se sente perdidamente apaixonado quantas vezes não ocorrem situações que infelizmente deixamos passar em brancas nuvens em nome da paz do amor que pensamos existir?

“Fazia seu teatrinho e logo em seguida me oferecia uma flor que encontrasse pelo caminho, uma xícara de café no bar mais próximo ou balas de violetas, que adoro. Eu ficava confusa diante dessa ambiguidade. A solução momentânea sempre vinha da sua pele macia, dos seus braços grossos, e eu seguia em frente, sem retrucar.

Passava por cima das grosserias por me parecerem absolutamente destoantes de tudo que ele me havia dito nas mensagens e telefonemas. Colocava-as numa espécie de arquivo mental denominado excentricidades ivanísticas. Para mim, não era o Ivan real, entende? O ser amoroso que foi meu confidente durante meses era o Ivan verdadeiro.”

Todavia, mesmo em seu sofrimento extremo ao rememorar tais fatos – porque Helen acreditava estar contribuindo de alguma forma para ajudar aquela mulher jogada numa clínica psiquiátrica -, e mesmo em uma luta terrível como é a de manter e fazer prosperar um negócio em um país de incertezas e safadezas contumazes como é o Brasil, continua tentando fornecer ao médico algum dado que pudesse ajudar. E ficamos sabendo de invenções de acidentes, estelionato de cartões de créditos, dinheiro dela pagando tudo, sumiços calculados, operações médicas de urgência forjadas, e uma série de golpes que ficavam sempre no limiar entre a pura e simples bandidagem e pequenas infrações éticas do tal portenho. Uma tragédia anunciada ocorrera com aquela mulher da clínica. Que fim terá a pobre coitada vítima do mesmo homem? Como Helen conseguirá recordar de tantas desgraças em sua vida sem voltar a se desestabilizar?

Vale a pena referir um questionamento que pode ocorrer ao leitor atento ao desenrolar da trama romanesca. Teria o ser humano que pauta sua vida em valores éticos, recursos ocultos como por exemplo um sonho fortuito em que vemos um rosto de mulher morena de olhos verdes e que no final das contas significa muito mais do que somente isso? Mistérios do imponderável que felizmente envolve nossas vidas… Ficamos com a pulga atrás da orelha. Pior do que o bandido(a) que simplesmente nos rouba os anéis, é aquele outro(a), que pretende levar-nos os dedos também, porque “tecem fio a fio, ponto por ponto, a rede pegajosa que nos foi lançada, trançando a malha da dependência afetiva contra a qual temos de lutar tanto”. Aí a maldade personificada. Não aquela que é fruto de um deslize de caráter ou do impulso momentâneo, mas outra, a que invade o território psíquico do outro, abala-lhe a confiança, o amor próprio, ataca a sanidade mental e, finalmente, destrói a autoestima de seu alvo. A tecnologia da internet facilita muito a atuação de perversos narcisistas. Esse o jogo de esconde-esconde que mostra apenas as facetas que representam e reforçam um prolongamento do que a outra pessoa é, e o que deseja ver. Daí a grande metáfora de que “nenhum espelho reflete o teu rosto”.

Mais um pequeno detalhe que não se pode deixar de referir: Há uma passagem no livro que ilustra muito bem o que ocorre na seara da vida e do amor, esse maravilhoso sentimento que nos faculta vida mais plena: “O meu mundo é o da joalheria, onde coisas mínimas podem destruir ou salvar uma jóia. O universo das facetas, em que cada pedra pode ser vista de tantos ângulos diferentes, o que muda tudo. É a esfera do vir a ser, de cada pedra bruta encontrada e retirada das profundezas das minas, depois cortada no rebolo, em seguida lapidada, multifacetada, lustrada, e cravada em uma peça que por sua vez exigiu uma série de técnicas e de cuidados até estar pronta para receber o seu prêmio, o seu ornamento, a coroação que lhe dará a forma final e arrematará a sua beleza e a sua completude”. Queimar etapas em relações humanas nem sempre trazem resultados satisfatórios. Deve ser, também por isso, que há tanta gente comprando bijuterias por diamante azul. Disto nos fala o livro da senhora Rosângela Vieira Rocha.

 

Livro: “Nenhum espelho reflete seu rosto” – Romance de Rosângela Vieira Rocha – Arribaçã Editora, Cajazeiras – PB 2019, 268 p.

ISBN 978-85-906976-5-7

 

(Texto publicado por Krishnamurti Góes dos Anjos em sua página no Facebook, em 25 de junho de 2019)

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