O HOMEM QUE ESCREVIA PARA GANHAR PRÊMIOS (no país do faz de conta)

Por Krishnamurti Góes dos Anjos*

Já tivemos a oportunidade de observar em passado recente (2018), a rara capacidade que possui o escritor Brasiliense Lourenço Dutra quando põe gente conversando e deslindando personalidades. Gente que sem o saber se expõe a julgamento pelos seus instantes decisivos de prosa coloquial. Já havíamos observado inclusive, que é nos vãos e desvãos do diálogo que lemos Dutra e suas criações dialógicas a atingirem em cheio a curiosidade do leitor no que tange ao amadurecimento da ideia de ‘diálogo’ entre as personagens. Alcança com isto também, objetivos outros.

Dutra muniu-se de coragem e enveredou na complexidade do romance e de tema igualmente complexo. “O homem que escrevia para ganhar prêmios”, sua mais recente produção nos dá conta, em forma de diálogo puro, dos percalços de um certo Jaime. Personagem que apesar de já ter algumas poucas obras publicadas deseja ardentemente subir ao pódio dos autores agraciados com prêmios literários. E é aí que a porca torce o rabo. Por duas razões; a primeira, elementar.  Prêmio literário não significa reconhecimento definitivo para escritor nenhum, e a segunda e dolorosa, é que na levada (levada aqui significando esculhambação geral), em que vivemos, o sujeito, o tal autor, tem que rebolar imerso na grande sordidez que vai envolvendo e sufocando os bastidores da vida literária da Bruzundanga.

De modo que o leitor tem diante de si obra que lembra muito uma peça de teatro. Narrativa ágil, praticamente sem interferência de narradores, na qual os diálogos vão desvendando os meandros da vida do Jaime e suas peripécias para conseguir ganhar um prêmio literário. Mas não lhe serve um prêmio literário irrelevante. Tem que ser no mínimo, um “Cágado de Ouro” ou outro, melhor ainda, que além de impulsionar o escritor ao estrelato, paga bom dinheiro aos vencedores. O “Marítimo das Letras” (tome-lhe ironia). O romance é mesmo uma longa e jocosa sátira dividida em quatro partes com forte carga de ironia e sarcasmo. Do gracejo ao sarcástico Dutra tece duras e pertinentes críticas ao ‘sistema’ reinante no mundo literário que inclui também a crítica social mais ampla feita às pessoas e aos costumes de maneira quase caricata, mas nem por isso destituída da veracidade que a observação precisa do autor capta. Para boa parte, melhor, para a esmagadora maioria dos escritores desse país do faz de conta, eis abaixo, o percurso para a edição de uma obra literária. Editoras no sentido tradicional de acolhimento e acompanhamento das obras editadas existem sim, mas são pouquíssimas.

Trecho I – página 101.

“Depois de meses lutando com ideias, textos e revisores, deu o original como pronto e enviou para a editora. Três semanas depois, recebeu o resultado da avaliação editorial. Aprovado. Tudo seguiu rapidamente. Em um mês havia assinado o contrato, aprovado o miolo e a capa. A fonte usada no livro, ele gostou muito, mas a capa achou algo entre o mau gosto e o cult. Aprovou, porém, com ressalvas. Em dois meses, terminou de pagar a edição e os exemplares chegaram via transportadora.

Abriu a caixa, retirou um livro, cheirou a capa e o miolo. Abraçou o exemplar carinhosamente como um filho. Folheou, aproximou o nariz de algumas páginas. Cheiro de gráfica, cheiro de tinta e papel. Leu o título em voz alta: ‘Gente pandêmica’.”

Com efeito. O título do livro do Jaime ‘Gente pandêmica’ traz ambiguidades evidentes. Refere-se a uma população atingida por uma pandemia ou é ela mesma a pandemia (?), fica a pergunta no ar.  O cômico se entrelaça ao puro e simples deboche. Segue-se o relato dos passos incertos de Jaime, que tem no amigo Zé Paulo fiel escudeiro. Conselheiro de alpinismo literário.

Trecho II – páginas 81.

                “E era sempre assim. Mal a remessa chegava e já caía em campo realizando tudo. Jaime era massagista, gandula, roupeiro, zagueiro, centroavante e presidente do time literário. Divulgação nas redes sociais, entrega de exemplares nos principais jornais da cidade, torcendo para que o editor de cultura desse um espaço. Marcação de lançamento geralmente em um boteco badalado e com perfil artístico. Contato com amigos e colegas no corpo a corpo para ter um quórum mínimo no dia do lançamento e o pior: embalar livro a livro e despachá-los nos Correios, concretizando assim as vendas via internet.” 

Ao lançar no texto a estrutura ambivalente da sátira, o autor convida o leitor a que se dê conta de seu traço dual. A todo momento sinaliza, acena, provoca obstinadamente o leitor para a aventura de encarar a complexidade de tal realidade frente a frente. Ambiguidades, que propõem novos pontos de vista. Mas não o faz de forma explícita. As opiniões sugeridas caracterizam­‑se por serem resultado de uma tensão inerente aos discursos habilmente elaborados e construídos a partir de características de uma conversa, quase sempre a dois. Sem entrarmos no mérito propriamente dos valores estilísticos presentes no texto, observamos que boa parte dos diálogos construídos são travados, como “guerrilhas” entre o sujeito vaidoso, mas ingênuo que é Jaime, e o amigo Zé Paulo, que usa de malícias e estratégias que vão desde a irônica agressão, até argumentos decisivos, com o fito de mostrar ao amigo como, e por quais meios poderia mais facilmente atingir os fins de surfar “na crista da mídia”.

O autor positivamente acerta a mão na urdidura dos diálogos, que se revelam, às vezes, mais eficientes do que as próprias falas reais, pelas quais as personagens podem simular ou esconder intenções ou torná-las obscuras. Exemplo: Jaime é homem reticente, inseguro. Seus silêncios, sobretudo com relação a uma mal resolvida questão amorosa com uma tal de Carlota, tem uma importância fundamental na trama. Quanto a isto é refém de indecisões e silêncios o que acentua seu drama interior. Carlota representa a mulher fatal, independente, talvez o contraponto que cala fundo em Jaime, que por sua vez, leva a vidinha pacata de pai amoroso e bem-casado com Michele. A velha questão da dualidade. Seguir o ritmo tranquilo do cotidiano, ou meter o pé na jaca, e fazer tudo, mais tudinho que o mundo ‘profano’ anda a sugerir a torto e a direito. Eis outra questão que o atormenta.

Instaura-se na narrativa o movimento de reflexão e, consequentemente, de ampliação do conhecimento e da percepção crítica que destoa, e muito, do senso comum ou da concepção da maioria. Jaime e Zé Paulo incansáveis, exploram o universo literário eivado de grupinhos, panelinhas e grupelhos. Participam de saraus poéticos e oficinas literárias, estas últimas a proliferar no Brasil prometendo transformar qualquer sujeito medianamente alfabetizado em uma usina de criatividade literária. Visitam editorias de “cultura” de jornais inclusive. É hilário este martírio rumo ao sucesso retumbante.

Trecho III – páginas 72/73. – [A cena se passa num Sarau Poético Underground após a apresentação da poeta Raimunda Esquerdeskaya ]

                – Jaime! – Chamou Zé Paulo em meio a gritaria.

                – Sim?

                – É disso que você precisa. – berrou.

                – O quê? – Mãos em formato de concha grudadas ao ouvido direito.

– Atingir um nicho.

– Nicho? Que nicho?

– Comunistas, mulheres, negros, gays, ambientalistas.

Jaime em silêncio.

– E ser anti. Antirracista, antimadeireiro, antimisógino, antipatriarcal, antidireita – continuou Zé Paulo.

O amigo em silêncio.

– Jaime! – Chamou aos gritos.

– O que foi?

– Entendeu o que eu disse?

– Estou pensando, estou pensando, estou pensando…”

Segue a doidera, até que o escudeiro Zé Paulo, por solidariedade ao amigo, ou por pura competição, ou ainda, recôndito sentimento de inveja, vira de uma hora para outra, escritor também. E toca a escrever seu livro. Um romance distópico com o título de “Rumo ao planeta Himprodutivo”, assim mesmo com H.  Afinal, os dois lançam suas obras. Sarau com a presença de quatro gatos pingados. Dom Quixote inoculou o fiel Sancho Pança, com o vírus do delírio e os dois seguem obstinadamente em busca dos louros. Surpreendentemente acabam por figurar como finalistas do tal prêmio “Cágado de Ouro”. O desfecho de toda essa trama é verdadeiramente admirável.

Machado de Assis é autor de um conto publicado no ano de 1878, sob o título de “Elogio da vaidade”. A certa altura ele dá voz à vaidade: “busca-me em ti mesmo, nas tuas botas, na tua casaca, no teu bigode; busca-me no teu próprio coração.” Uma crítica inquietante e cortante ao comportamento vaidoso, que se associa ao prazer, à alegria e à realização. Pior ainda o nosso tempo. Vivemos em tal exposição das pessoas em redes sociais e no ambiente virtual como um todo, que faz nossas vaidades alcançarem as raias da loucura coletiva. Mesmo que nesse mesmo mundo atue a implacável patrulha ideológica que detona qualquer um que reze fora da cartilha da mediocridade reinante. Todos querem compartilhar dessa rotina e desse comportamento relacionado à vaidade que, nesse contexto, nada mais é do que uma tentativa, quase desesperada, pelo reconhecimento e aprovação a partir do olhar do outro. Que esse outro vai assegurar a partir de curtidas, comentários e compartilhamentos que determinada pessoa está sendo aceita e inserida em uma ‘cultura’ predeterminada. Endoidamos de vez.

Desdenhamos da árdua e salutar construção intelectual, do esforço individual para estudar e aprender, que necessariamente leva anos e anos para se alcançar. Lógico, as tecnologias eletrônicas, de mãos dadas com uma mídia cínica, escrava do todo poderoso mercado, nos transmitem a falsa impressão de que é esforço desnecessário, já que tudo pode ser resolvido com apenas alguns cliques e respostas imediatas do google. Ledo engano. O que esse estado de coisas nos trouxe aí está a olhos vistos. O completo rebaixamento da atividade intelectual. Tudo anda no ilusório, no falso, no aparente, no raso e sobretudo no me-di-o-cre! A literatura não escapou disto. Infelizmente.

Sintomaticamente, não há no romance qualquer referência a leitura dos clássicos da literatura que Jaime ou o maluquinho do Zé Paulo tenham feito. O que existe é o improviso, o oportunismo de viver de opinião e para a opinião dos outros. Disseminou-se a ideia de que qualquer pessoa hoje pode tornar-se escritor de sucesso e mesmo um grande best seller com a publicação de um livrinho ruim, ordinário, reles, vulgar e rasteiro. Basta-lhe algum dinheiro no bolso para pagar a impressão da obra. Basta que junte a isto uma porção generosa de exposição em redes sociais, e uma pitadinha de compadrios. Pode uma coisa assim? Claro que pode, sobretudo em um país como o Brasil que vive de faz de conta. Faz de conta que temos uma democracia muito justa, faz de conta que não existe racismo e estamos todos irmanados socialmente, faz de conta que não existe brutal desigualdade econômica, faz de conta que não vivemos uma guerra civil surda. E de um faz de conta à outro, fazemos de conta que temos editoras dignas desse nome, faz de conta que temos uma rede de livrarias significativa, faz de conta que os livros circulam ativamente entre leitores, faz de conta que temos uma legião de escritores de escol, faz de conta que prêmios literários (última boia salva-vidas do náufrago escritor), chancelam inquestionavelmente o talento literário de quem os ganha. Só não fazemos de conta que temos leitores em um número tal que efetivamente sustente uma indústria livreira NACIONAL digna desse nome. Certas coisas não se podem varrer para debaixo do tapete. É isso, y otras cositas más que o romance do senhor Lourenço Dutra revela. E o faz provocando gargalhadas em nós mesmos.

Trecho IV – páginas 23/24. [conversa telefônica com o professor Emanuel]

                “– Muito obrigado. Sabe, professor, é que preciso vencer algum prêmio importante para ser notado e entrar no mapa.

– Prêmio? Vencer? Entrar no mapa? Afinal, filho, por que e por quais cargas d´água você escreve?

Jaime coçou o nariz, esfregou os cabelos com a palma da mão.

– Escrevo por necessidade.

– Necessidade de aparecer ou se expressar?

Emudeceu. Assimilou a pergunta que não queria responder e simplesmente sorriu.”

 

Livro: “O homem que escrevia para ganhar prêmios”, Romance de Lourenço Dutra – Editora Arribaçã – Cajazeiras – PB – 2022, 164 p. – ISBN 978-65-5854-591-0 – Link para compra e pronto envio:

http://www.arribacaeditora.com.br/o-homem-que-escrevia-para-ganhar-premios/ ou

https://www.facebook.com/profile.php?id=100003612859015

(*) Krishnamurti Góes dos Anjos tem publicados os livros: Il Crime dei Caminho Novo – Romance Histórico, Gato de Telhado – Contos, Um Novo Século – Contos, Embriagado Intelecto e outros contos, Doze Contos & meio Poema e À flor da pele – Contos.  Participou de 28 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Há textos seus publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último romance publicado pela editora portuguesa Chiado – O Touro do rebanho – Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional – Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance. Colabora regularmente com resenhas, contos e ensaios em diversos sites e publicações. Atuando com a crítica literária, resenhou mais de 300 obras de literatura brasileira contemporânea veiculadas em diversos jornais, revistas e sites literários.

Deixe uma resposta