“O meu trabalho gira em torno de personagens femininas” sintetiza Rosângela Vieira Rocha

Por Marcio Sales Saraiva*

Marcada pela literatura de Jane Austen, Machado de Assis e Dostoiévski, a escritora Rosangela Vieira Rocha, de Brasília, é autora de treze livros (seis para adultos e sete infantojuvenis) e se prepara para, em breve, lançar um novo romance sobre sororidade. Conheça um pouco mais sobre sua obra, influências e opiniões.

Nosso CAFÉ PÓS-MODERNO recebe hoje a escritora Rosângela Vieira Rocha, que irá responder 13 perguntas e deixar um fragmento.

1- Quando você começou a escrever?

Logo depois de ter sido alfabetizada, comecei a inventar modas: escrevia cartas para namorados das moças da cidade onde nasci, a pedido delas, claro. Iniciava, reatava e terminava namoros. Naquela época, tudo era feito pelos correios. As cartas escritas à mão, letras caprichadas etc. Eu rascunhava e elas copiavam. Meu pai, brincalhão, achava muita graça. Minha mãe, um pouco mais casmurra, via esses “feitos” com reservas, embora não se opusesse claramente. Havia também os versinhos que fazíamos no Natal, hábito que meus pais incentivaram, aliás, inauguraram, a fim de suprir a simplicidade dos poucos presentes que podiam comprar. Venho de uma família modesta, de cinco filhos. Lembro-me também dos versinhos que, criança, eu fazia nas campanhas políticas das quais meus pais participavam, e na malhação do Judas, brincadeira que papai manteve, durante vários anos. De madrugada, ele pegava móveis nas casas alheias, como cadeiras e redes que estivessem nas varandas, e carregava tudo para o local onde seria a malhação do Judas. Na hora exata, os versos eram lidos no megafone, e os objetos devolvidos. Todos achavam muita graça, era um grande divertimento.

Na adolescência, escolhi cursar Jornalismo porque achava que era o modo mais fácil de me tornar escritora. Não havia informações a respeito. Sempre tive facilidade para escrever e li muito a vida inteira. Mas só publiquei o primeiro livro, o romance “Véspera de lua”, em 1990, depois de ter obtido o Prêmio Nacional de Literatura Editora UFMG 1988, na época muito importante.

2- Escrever é um dom ou consequência de muita leitura e transpiração?

Essa pergunta, aparentemente simples, não tem resposta fácil. Creio que seja um dom, sim, mas só até certo ponto. Não gosto muito do termo “dom”, prefiro aptidão. Assim como existem pessoas com maior facilidade para a Matemática, por exemplo, para outras escrever é algo quase que natural. Mas isso é só o começo e não é suficiente para formar um/a escritor/escritora. O primeiro passo é a leitura. Só escreve bem quem leu/lê muito. O segundo – que é crucial, no processo – é o esforço que se está disposto a despender. Não somente o esforço, mas a persistência, a resiliência, inclusive. É um trabalho feito com paciência e com humildade para reescrever quantas vezes for necessário. Escrever é reescrever, é não ter medo do papel em branco e nem de jogar dezenas de páginas fora, fruto de dias e dias de trabalho. Não é tarefa para apressados ou que querem resultados da noite para o dia. Fiz cinco versões de um dos meus romances, só para você ter uma ideia.

3- Quais os “clássicos” da literatura você mais admira?

Acho indispensável a leitura dos clássicos. Vou relatar três experiências que me marcaram muito, do ponto de vista literário, duas na infância e uma já como adulta. Considero “Orgulho e preconceito”, da Jane Austen, o livro mais importante da minha vida. É uma história que gosto de repetir sempre: como na minha pequena cidade, Inhapim, MG, não havia biblioteca pública e nem livrarias, algumas meninas apaixonadas pela leitura se juntaram, numa espécie de clube informal, para conseguir livros. Era uma verdadeira saga: quando alguém saía para as cidades maiores, geralmente em busca de tratamentos de saúde, nós quase implorávamos que nos trouxesse algum livro. Não eram leituras guiadas, não tínhamos como consultar bibliografias, e – com raras exceções – a pessoa comprava o livro que queria. Ocorre que eu era a mais nova do grupo, e geralmente lia por último. As mais velhas, algumas já moças, tinham prioridade. Nem discutíamos isso, era um critério natural, digamos. Lembro-me de bater à porta da casa de várias amigas, cobrando o livro, e geralmente sair decepcionada. O ritmo das outras, em sua maioria, não condizia com a minha ansiedade. No caso de Orgulho e preconceito, quando o exemplar chegou às minhas mãos estava sem as últimas vinte e sete páginas. Mas não vi e comecei a ler, apaixonando-me imediatamente pelo carismático Mr. Darcy, o herói da história. Não fazia a menor ideia de quem era Jane Austen, não conhecia nada sobre sua vida e nem tampouco poderia imaginar que se tratava de uma das maiores escritoras da língua inglesa. O que sei é que subi logo no galho da mangueira onde me escondia para ler e me vi diante de um esplendor. Procurei alongar ao máximo a leitura, lia e relia cada parágrafo, para que a história nunca acabasse. Ao descobrir que não tinha final, que as últimas páginas tinham desaparecido, chorei durante horas. De nada adiantou as amigas me contarem como a história acabava, eu queria ler com meus olhos. Depois, quando me mudei para Brasília, com catorze anos, uma das primeiras coisas que fiz foi adquirir seis exemplares do livro, por garantia. Foi um trauma, naquelas circunstâncias. Posteriormente, li todos os livros de Jane Austen traduzidos para o Português. Outro clássico marcante foi Machado de Assis. Uma das minhas irmãs, professora primária, adquiriu de um caixeiro-viajante os 33 volumes de suas obras completas, em papel Bíblia. Li todos os livros. Gostei mais, inicialmente, da fase romântica do escritor, pois me faltava maturidade para captar a ironia das nuances de “Memórias póstumas de Brás Cubas”, por exemplo. Anos depois o reli e minha compreensão foi completamente diferente. A última dessas experiências ligadas ao “acaso”, se é que acasos existem, foi a aquisição que fiz de um motorista de táxi, que tinha acabado de perder seu emprego de vendedor de livros. Ele me ofereceu a coleção completa de Dostoiévski por uma bagatela e imediatamente a comprei. Há dezenas de clássicos que admiro, mas a importância desses três escritores adquiriu uma dimensão diferente e marcante para mim, pois estão diretamente ligados à minha experiência pessoal.

4- E na cena literária atual… Quem você já leu e gostou muito?

Essa pergunta é perigosa, em se tratando de Brasil, pois tenho medo de me esquecer de alguém e de magoar colegas. Por isso, vou citar de maneira genérica, em largas pinceladas. Tenho dado prioridade à literatura escrita por mulheres, nos últimos anos. O rol de escritoras brasileiras é extenso e muito consistente. Não posso deixar de mencionar Clarice Lispector, que abriu tantos caminhos para todas, ao lado de outras vivas, como Lygia Fagundes Telles. No momento atual, entre as escritoras em atividade, aprecio muito a literatura de Maria Valéria Rezende, Maria José Silveira, Noemi Jaffe e dezenas de outras. Entre as estrangeiras, vivas e mortas, cito Joyce Carol Oates, Margaret Atwood, Marguerite Duras, Katherine Mansfied (para mim a melhor contista do mundo), Virginia Woolf, Marguerite Yourcenar, Carson McCullers, Harper Lee. Entre as sul-americanas de fala espanhola, a chilena Marcela Serrano, Isabel Allende, Selva Almada, Laura Restrepo. Mas insisto que há muitas outras, entre as quais destaco as africanas, que têm escrito muito nos últimos anos. Leio escritores também, é claro. Mas a lista é tão longa que não posso me estender. No Brasil, tenho especial apreço pela obra de Bernardo Kucinski e João Carrascoza e, entre os estrangeiros, registro o trabalho de J. M. Coetzee, Paul Auster e Amos Oz (este último recentemente falecido).

5- Neste momento, qual é o livro que você está lendo?

Acabei de ler “La casa de los conejos”, da argentina Laura Alcoba, e estou iniciando “Los pasajeros del Anna C.”, da mesma autora. Tenho muito interesse pela literatura de resgate da memória das ditaduras latino-americanas, digamos assim. São obras que mesclam memória, autoficção, documentos, e ficção propriamente dita. Um gênero híbrido, por assim dizer, e atualíssimo. A meu ver, é urgente que se conheça a história dos períodos negros de nossos países.

6- O que você já publicou até aqui?

Tenho treze livros publicados, 6 para adultos e 7 infantojuvenis. “Véspera de Lua”, Editora da UFMG, (romance), 1990, ganhador do Prêmio Nacional de Literatura Editora UFMG – 1988; “Rio das Pedras”, Secretaria de Estado de Cultura, 2002, novela vencedora da Bolsa Brasília de Produção Literária 2001, Menção Especial no Prêmio Graciliano Ramos, da União Brasileira de Escritores, além de ter sido classificada entre os dez finalistas da 4ª. Bienal Nestlé de Literatura Brasileira; “Pupilas Ovais”, (contos), LGE Editora, 2005, selecionado para obter o apoio do FAC/DF; “A festa de Tati” (infantil), Franco Editora, 2008; “Fome de Rosas” (romance), 2009, FAC/Nossa Cidade, “Dias de Santos e Heróis” (infantil), Editora Prumo, 2009, “Três contra um” (infantil), Franco Editora, 2011, “Nem tudo foi carnaval”, (juvenil), Editora RHJ, 2012; “Janaína, a bailarina” (infantil), Franco Editora, 2012; “O macuco Felício” (infantil), Editora Cortez, 2014; e “O vestido da condessa” (infantil), Franco Editora, 2014, “O indizível sentido do amor” (romance), 2017, Editora Patuá e “Nenhum espelho reflete seu rosto”, ed. Arribaçã, PB. Participei de várias antologias, entre as quais se destacam a “Antologia do Conto Brasiliense”, organizada por Ronaldo Cagiano. Brasília: Projecto Editorial/Livraria Suspensa, 2004; “Mais trinta mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira”, org. por Luiz Ruffato, Editora Record, 2005, “Todas as gerações – o conto brasiliense contemporâneo”, organizada por Ronaldo Cagiano, LGE Editora, 2006, “7º Prêmio Escriba de Contos”, Secretaria Municipal de Ação Cultural: Piracicaba, 2009, de “Balões Coloridos – Crônicas”, Editora Via Literária, Porto Seguro, 2010. Meu nome consta do “Dicionário de Escritores de Brasília”, org. por Napoleão Valadares, 2ª e 3ª edições (2003 e 2012), da “História da Literatura Brasiliense”, org. por Luiz Carlos Guimarães da Costa, Brasília: Thesaurus, 2005, de “Mulheres – Prosa de ficção no Brasil 1964-2010”, org. por Marcia Cavendish Wanderley, Rio de Janeiro: Ibis Libris/FAPERJ, 2011 e do “Dicionário de Mulheres”, org. por Hilda Agnes Hübner Flores, Florianópolis: Editora Mulheres, 2011. Atualmente, sou colunista da revista literária digital Germina.

7- Se alguém deseja conhecer sua produção literária, você recomenda começar por onde?

Sugiro que leia o primeiro livro que publiquei (o segundo que escrevi), “Véspera de lua”, reeditado em 2015, pela Penalux. Foi lançado em 1990 e considerado muito avançado para a época, pois os temas centrais são a homossexualidade feminina e a menstruação. Não existia ainda a sigla TPM, ninguém falava sobre cólicas menstruais. É um livro sobre assuntos tabus. O surpreendente, para mim, é que muitas pessoas ainda o consideram, trinta anos depois, obra de vanguarda, de certa maneira. Como já disse, ele obteve o Prêmio Nacional de Literatura Editora UFMG 1988.

8- Prosa ou poesia? Conto, novela ou romance?

Para ler, gosto muito de romances, de contos e de poesia (nessa ordem). Tenho um livro de contos, “Pupilas Ovais”, muito bem recebido pelo público, em que quase todas as personagens principais são mulheres, e tenho contos publicados em várias coletâneas. Mas prefiro escrever narrativas longas. Como escritora, é no romance que me sinto mais à vontade.

9- Se ainda não dá para viver só de literatura, como você sobrevive?

Não ganho dinheiro com literatura. Aliás, no frigir dos ovos, gasto. Sobrevivo dos meus vencimentos como professora aposentada do Departamento de Jornalismo da Faculdade de Comunicação da UnB.

10- Algumas escritoras e escritores fazem depoimentos de cunho político outras defendem a “arte pela arte”, uma autonomia entre fazer literatura e o contexto sociopolítico. Em sua opinião, qual a relação entre arte (ou obra literária) e a política?

Fazer literatura é, por si só, um ato político. Não vejo como desvincular as manifestações artísticas da política. Antes de ser escritora, sou mulher e cidadã brasileira. E como cidadã de certa maneira privilegiada, pois tenho algum espaço para ser lida e ouvida – por pequeno que seja-, escrever e falar sobre certos temas me parece obrigatório. Não me refiro a uma “obrigação” imposta, vinda do exterior, mas à necessidade e urgência interiores que me mobilizam. Sempre tive preocupações de natureza social e política, sou viúva de um ex-militante preso e torturado pela ditadura militar. Estranho e incoerente seria ignorar a minha história e o percurso que fiz, como ser humano e cidadã, para chegar até aqui.

11- Em que momento da vida você sentiu: “eu sou escritora”.

Quando escrevi meu primeiro livro, “Rio das pedras”, publicado vinte anos depois, em 2002, quando ganhou o Prêmio Brasília de Produção Literária da Secretaria de Cultura do DF, (por falta de oportunidade, pois era dificílimo publicar nos anos oitenta), essa descoberta aconteceu. Aliás, na própria novela há uma discussão sobre o ato de escrever, questões de gênero e de identidade, o de se saber escritora, e como tudo isso dói e creio que doía muito mais em décadas anteriores. Éramos mais solitárias, não tínhamos com quem falar. Hoje várias portas se abriram, há editoras independentes e iniciativas fundamentais como o Movimento Mulherio das Letras, em nível nacional. Existe uma longa estrada a percorrer, mas as mulheres escritoras já existem coletivamente, no país. As mais jovens nem imaginam como o caminho, que ainda não é fácil, já foi incomparavelmente mais árduo.

12- Qual é a pergunta que você gostaria de responder e eu não fiz?

Parece-me fundamental a identificação, pelo/a escritor/a, do seu projeto literário, que vai nortear toda a sua produção. Às vezes isso não ocorre de caso pensado, de maneira racional. Mas se olho para trás e analiso meu livro de contos e os meus cinco romances – brevemente serão seis – vejo coerência e direcionamento nesse projeto. Creio poder afirmar que o meu trabalho gira em torno de personagens femininas, realçando as dificuldades que a sociedade impõe às mulheres, que tipo de lutas elas enfrentam na afirmação de sua identidade de gênero, que problemas têm de resolver para serem cidadãs livres, fugindo às armadilhas da sedução e da violência misógina e machista. Isso inclui todas as mulheres, hetero ou homossexuais, vítimas da opressão em diferentes graus, sejam de classe média ou pobres. É um projeto amplo.

13- Qual é seu próximo projeto literário?

Brevemente lançarei um novo romance, que está pronto e revisado, em fase de finalização da capa. É sobre as relações entre irmãs, um livro sobre a sororidade, uma das coisas mais belas que existem, a meu ver. Mas acho melhor não adiantar mais, no momento. Sou meio supersticiosa.

Deixe uma frase ou fragmento de texto para quem leu esta entrevista:

“Hoje estou certa de que tudo era feito propositalmente. A sedução de Ivan era calculada, detalhista e fria. Para ele, seduzir não bastava, o que almejava era que sua “presa” ficasse adicta de suas atenções, de suas mensagens, de seus telefonemas. Era como se ele incorporasse uma droga muito potente, uma super cocaína pensante e com vontade própria, que se mostrava, se oferecia e depois se ocultava um pouquinho. Fascinava-o perceber o aumento da dependência e a consolidação do vício na pessoa que tinha escolhido como sua seguidora. Ele o fazia de maneira consciente e requintada. Não tinha nada a ver com sentimentos, com amor, ternura ou amizade. Uma questão de poder, apenas”. (Trecho extraído de “Nenhum espelho reflete seu rosto”, ed. Arribaçã, 2019).

Onde encontrar Rosângela Vieira Rocha?

Os livros “Nenhum espelho reflete seu rosto” e “O indizível sentido do amor” (de 2017) podem ser adquiridos diretamente com a escritora ou, respectivamente, no site da editora Arribaçã e editora Patuá.

Endereço eletrônico: rosavi@uol.com.br

Facebook: https://www.facebook.com/rosangela.vieirarocha

(*) Marcio Sales Saraiva é escrevinhador. Autor de “O pastor do diabo” (Metanoia, 2017) e organizador da antologia “16 contos insólitos” (Mundo Contemporâneo Edições, 2018), recentemente lançou seu “Engenho de Dentro e outros contos de aprendiz” (Mundo Contemporâneo). Texto publicado em Obvious: http://obviousmag.org/cafe_posmoderno/2020/rosangelavieirarocha.html?fbclid=IwAR3LVGIlqj2QhomROeI-lVwl1Rcat02E9jJ6cprX5-OMBnAOh7mDsduZULY

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