As Madalenas beatniks de Angela Zanirato

Por Linaldo Guedes

Poesia é linguagem, antes de tudo. A Literatura, como toda a arte, tem suas próprias regras que, no caso da poesia, envolvem ritmo, imagens, figuras de linguagem, associações de palavras, etc. Até para negar tais regras em sua poética, a pessoa que escreve poesia precisa ter conhecimento disso. Claro que a inspiração serve como mote para qualquer construção artística, mas é preciso ter noção do que se está fazendo, seja por estudo ou leituras, para não correr o risco de cometer bobagens. E quando essa preocupação com a linguagem está associada a um conteúdo forte e original, o poeta chega ao ápice da sua produção.

Vencedor do I Concurso Literário Arribaçã – na categoria Poesia -, o livro “Madalenas Desarrependidas”, de Angela Zanirato, reúne tudo que foi mencionado no parágrafo anterior. E na dose certa! Nem só preocupação com a linguagem, nem apenas conteúdo. Talvez por isso tenha recebido nota máxima de quase todo o corpo jurado do concurso. Daí ter sido vencedora entre obras de todo o Brasil, algumas acima da média e que também mereceriam vencer o concurso.

A originalidade já começa pelo título: Madalenas Desarrependidas. O Madalenas aqui remete imediatamente à polêmica personagem bíblica, aquela que fez Jesus Cristo cunhar uma frase até hoje utilizada em diversas situações: atire a primeira pedra aquele que nunca pecou. Só que as Madalenas de Angela Zanirato são outras. Ela busca inspiração em personagens de sua cidade – Paraguaçu Paulista (tão bem ilustradas por Leonardo Guedes na capa da obra) para falar das mulheres de maneira geral. Da forma como as mulheres são encaradas pela sociedade desde as páginas da Bíblia até os dias atuais. Sejam elas religiosas ou profanas, sempre são colocadas em segundo plano, embora venha delas a origem de todos nós.

Não é um livro feminista, no sentido estrito do termo, embora todas as lutas feministas estejam nos versos das 112 páginas da obra. Também não é um livro que busca a releitura de conceitos cristãos. É um livro que busca, sobretudo, reler o papel da mulher na sociedade. E por que “Desarrependidas”? Porque às mulheres de Angela Zanirato não cabem arrependimento. Afinal, que crime elas cometeram, além do de querer ser e estar, onde todos nós, homens, sempre lhes negamos?

Vejam, a título de ilustração, o primeiro poema do livro – Três Marias de Magdala, quando a poeta, ao falar das três personagens de sua cidade, encerra com essa assertiva: “se falo de Sofia, Nair e Rosária falo de Marias e peregrinas.  mulheres territórios. sem fronteiras demarcadas. mulheres pássaros que viajam sem voar. mulheres terra.  de montanhas e vales onde brotam flores de maracujá”      

Para corroborar a minha fala inicial, faço, aqui, a citação do parecer de André Ricardo Aguiar, da comissão julgadora do concurso, sobre a obra: “Como disse Ezra Pound sobre literatura, e usando o caso específico do poema, como linguagem carregada de significado até o grau máximo possível, esta obra alia uma temática que expande uma percepção sobre a vida feminina, e em sucessivas camadas, atinge o cerne de uma vivência sobre o mundo, seus efeitos e contrastes. Afora isso, é uma poesia ousada, investida de imaginação e questionamento, dentro de uma proposta em que põe o leitor em alerta. Sua capacidade está em não tratar o poema como um projeto fechado, mas aberto em suas mais inusitadas trilhas. E por último, há o tão (in)esperado estranhamento, no melhor sentido do termo.”.

Isso tudo que André comenta pode ser observado nos dois poemas seguintes, ambos intitulados “Maria de Magdala”. Em um deles fala do homem santo que se apaixonou pelos cabelos vermelhos de Maria de Magdala e de como eles viveram uma relação amoral, que desaguou no nascimento das bruxas. Em outro, mostra as modificações genéticas na última semente de Maria de Magdala – transformando elas em cegas, albinas, com braços decepados… Sim, Maria de Magdala não é outra senão a Maria Madalena, acusada de adúltera mas que terminou sendo uma das mais fieis seguidoras de Cristo.

Esses três poemas iniciais servem de mote para tudo que vem nas demais páginas da obra, a maioria saindo do terreno sacro ou bíblico para o mundo contemporâneo. Assim, surgem depressões (“para não morrer não leio Sylvia Plath, Ana Cristina César, Anne Sexton ou Florbela Espanca”), as tarjas pretas, anorexia, a pornografia e o erótico, os bailes funks, a flor, o país, unhas pintadas, Van Gogh, kamikazes, desencontros, amorosos, enfim. Tudo para mostrar que a mulher de seu tempo “é uma Guernica/ cubista/ decomposta/ mulheres quebra-cabeça/ mulheres hematomas/ mulheres decodificadas”.

Segundo Ivy Menon, no prefácio da obra, o leitor ao fazer o primeiro contato com “Madalenas Desarrependidas” experimentará um incômodo imenso. Uma angústia. Uma terrível sensação de estar a contemplar a humanidade em carne-viva. “E especialmente nós, as mulheres, estaremos sem pele. Escalpeladas. Em brasas. Do decorrer da leitura, somos colocados diante do espelho, com uma faca na garganta. Seremos obrigados não só a enxergar a dor de todas as mulheres, como também da raça humana, enquanto parte do cosmos uno, múltiplo e único. Partículas subatômicas infinitas, solitárias, perdidas e inexplicavelmente interligadas. Bukowski, certamente, tremeu no paraíso dos poetas, ao conhecer as Madalenas matematicamente insanas de Angela. Ele as recebe como flores que brotam do sangue. Aquele mesmo que fazia questão de deixar escorrer, enquanto aguardava revolução e… morria de amor”, afirma Ivy.

A citação de Bukowski no texto da Ivy não parece aleatória. O autor foi uma das referências da chamada Geração Beatnik, que teve, ainda, expoentes como Jack Kerouac e Allen Ginsberg. A poesia de Angela Zanirato bebe muito da fonte dos beatniks. Sobretudo na linguagem, sem medo de fazer poema-prosa, de usar gírias quando achar necessário, em poemas que parecem conversar com o leitor, a começar dos próprios títulos. Sem falar no apego à cultura pop, à música, principalmente. A poesia de Zanirato tem tudo isso, mas com um estilo todo seu. Lembrando que beat era, digamos assim, gíria também para oprimido, rebaixado, espezinhado. Há um pouco de tudo isso na poesia de “Madalenas Desarrependidas”, lógico que sob o olhar feminino. Uma poesia que vá direto ao ponto. Nem por isso deixa de ter lirismo, ritmo e imagens fortes. Como no poema “Eu te disse, vai lá e ama!”

 

amar o homem que não te ama

lavar os pés  engraxar os sapatos

calçar o homem lamber as botas

 

lavar a roupa do homem que não te ama

dar as melhores partes do frango

comer o pescoço a asa as vísceras

dar ao homem o peito e as coxas

 

ficar de quatro para o homem que não te ama

gemer de dor enquanto ele urra

transformar segundos em horas

silenciar enquanto ele fala

não fazer denuncia do homem que não te ama

quando chega alcoolizado  e te  violenta

moral e fisicamente

 

amar o homem que não te ama

apesar do homem

apesar da barriga de cinco meses

apesar da fome dos chutes

queimaduras e cortes

 

amar o homem que não te ama

suportar o homem

pela sina

pela fé

pelo padre e pastor

pelo medo do inferno

 

amar o ódio achando que é amor.

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