DE OLHO NA ESTANTE: Ante o segredo da palavra, a poesia é munição para a topada do poeta

“Vejo vir vindo no vento o cheiro da nova estação”. Já que o novo sempre vem, mesmo no fragmentado ecossistema da contemporaneidade. Contemporaneidade que tem dificuldade em compreender o reconhecimento prático de “um plural comum” ou mesmo um espectro de uma identidade homogeneizante. Neste vento de novas estações é que o poema urge, não como uma bandeira, mas como um arco, que lança a flecha impoluta da palavra bochorra que rasga o ar com uma fome que só as palavras têm e nelas tudo que é sólido se dissolve nesse próprio ar, parafraseando aqui Marx.  Tendo isso em mente, entendendo todos esses aspectos como um fluxo de que a poesia é movência, é nômade me chega às mãos o livro “O segredo da poesia” ( Arribaçã, 2022)  obra de estreia de Jeferson Araújo, exemplo de que o poema é semente sempre pronta para gerar.

Jeferson Araújo tem em seus versos debutantes o calço nesse fluxo/fragmentação presentificada nesse fazer do hoje. O que pode ser comprovado, por exemplo, na ausência de divisões entre capítulos, otimizando uma relação interna peculiar a formatação do conjunto dos poemas ali compostos, já que eles não têm uma sequência linearizada. Contudo, essa ação não anula a evidente disposição temática dos poemas ao longo da leitura do livro. Tais temas são postos de maneira que eles se agenciam entre si.

Nesse sentido, o poeta inicia o seu livro como uma espécie de bestiário. São poemas minimalistas nos quais os animais são o centro, intercambiados por aspectos de uma linguagem associada ao humor e reflexão que se aproxima de identificações de um olhar sensível para a vida não humana que habita o animal. O poeta nos faz caminhar os olhos sobre o chamo de “zoopoetimática” em que: girafa, tartaruga, lagarta, camaleão, gato e etc tomam conta da composição vérsica:

 

“abduzido por seu miado

acabo feito um cachorrinho

atendendo aos seus caprichos de gato

 

ele, o dono

eu, o domesticado”. ( Gato p.)

 

Mas o poeta também faz questão de demonstrar que sabe abordar os temas imemoriais, aqueles mais recorrentes ao fazer da poesia: a solidão, o tempo, o amor, o desejo, a amizade, a mulher, a sensualidade, o erotismo. Como se observa em “Tua boca”: “ a tua boca/ chicote que me doma os sentidos/ em saltos pelos trapézios do meu corpo” (p. 65). Já em “O amor” lemos: “o amor é como um cacho de uvas/ pois mesmo que a primeira seja amarga/ não desistimos de chupar a última…” ( p.76) aqui nesse poema a palavra “amarga” nos apresenta também a ideia de “amar”, como uma ação imperativa no travoso sabor do contido no amor. No poema “Infantaria”, ainda na esteira do tema amor, o poeta nos dicciona: “ o amor é arma”, que se pensarmos em jogo anagramático da última palavra “arma” podemos chegar novamente a palavra “AMAR”. Aqui, mais uma vez, o amor com uma ação imperativa.

Jefferson Araújo é um poeta do seu tempo. E como tal demonstra-se atento, não deixando seus versos enclausurados em redomas ou colinas inalcançáveis, distante da realidade social que o leitor. Por isso, é fácil perceber a tragicidade dos impactos da pandemia, como pode ser visto em “ Pandêmico”. Ou ainda a ironia feita a ideia de perfeição, no que tange não só aos corpos, mas a vida de um modo geral, principalmente aquela apresentada nas redes sociais. E que a todo custo coloca a beleza/estética em primeiro plano, como se o mundo todo pudesse ser captado pelos arranjos que os “filtros” podem fazer para consertar a imagem. Tudo a serviço do sacrifício de homogeneização, que compõem as superfícies lisas/cleen dos smartphones, nos quais a presença de qualquer tipo de estrias ou marcas da passagem natural do tempo é negada. E toda e qualquer cicatriz tem a obrigatoriedade de não aparecer.  É o que vemos no poema “Cicatriz”, que é quase uma ode às marcas que trazemos em nossa existência:

 

“és a divisa da vida

és o autógrafo da dor

 

és a lembrança da tragédia

és o registro do milagre

 

és o caminho da jornada

és a prova que a vida

deixa marcas”

 

O poeta já manda a senha de que sem as cicatrizes não há vida vivida. Só vida postada, talvez! E que, portanto, fixar-se no “liso” é anexar-se ao efêmero, de modo que na realidade não há filtros ou fotoshop que nos oferte um antídoto para vivência. Assim, o eu lírico defende que na cicatriz não há acinte algum.

Outro fator que atravessa a escrita dos versos em “O segredo da poesia” é a intertextualidade. Esse recurso demonstra que, antes de ser poeta, Jefferson é leitor. Regra de ouro para quem quer ser escritor. Caminhar em tal esteira é entrar em um jogo importante para o fazer da arte, é uma forma de reescrita, não porque o que veio antes não era qualificado, mas como uma maneira de pensar as múltiplas formas de se constituir a escrita e de como se pode escolher algo para chamar de seu e, assim, seguir. Aqui é bom lembrar Bakhtin, quando afirma que a intertextualidade está presente em todos os textos, pois não há como criá-los de maneira isolada. Partindo dessa concepção, principalmente, a produção artística da escrita é emoldurada por outros escritos que o seu produtor leu, ouviu ou teve contato às vezes de maneira indireta. E tudo isto influencia na escrita, organizando diálogos entre as mais variadas vozes e discursos.

Com esta atitude, o debutante poeta apresenta tal diálogo nos seguintes poemas: “Uma flor nasceu na rua”, “Epílogo à Capitu”. O primeiro remete a Drummond, o segundo lembra Machado de Assis. “Dentadura” me lembra a ideia do “ sorriso portátil” do qual falou o poeta Sérgio de Castro Pinto em seu famoso poema “ A tristeza entre o avô e o copo d’água”, principalmente quando li em Jefferson: “para sempre distribuir / falsos e frágeis sorrisos” (p.51). Ou ainda no “Autorretrato”, que lançou na memória o fluxo  versíco de Cecília Meireles.

Jefferson Araújo, mesmo nesse livro de estreia, oferece ao seu leitor uma segurança ao compor seus poemas. Lança ladrilhos poéticos que sinalizam um poeta em construção. Demonstra boas criações metáforas e uma imagética considerável, mesmo diante de temas do cotidiano mais comum de nossa vida a “Árvore” (p.34), o “Relâmpago”(p.33), ou até mesmo quando o poema tem como tema central a “Cutícula”. Já pensou, um poema sobre a cutícula? Pois é, Jefferson tem. E demonstra um trânsito no dentro e no fora do poema. Isso é bacana.

Ler “O segredo da poesia” é caminhar em um fazer poético que assinala devir-espinho pronto para espetar, na ideia de que o espinho quando é para furar, desde novo traz a ponta. É sobre isso que os poemas de Jefferson Araújo me fizeram ler.

Por essas coisas ditas e por outras ainda por dizer, que o DE OLHO NA ESTANTE indica  “O segredo da poesia” (Arribaçã, 2022) de Jefferson Araújo.

 

* Johniere Alves Ribeiro é professor-doutor e resenhista parceiro da Arribaçã. O texto acima foi publicado na seção “DE OLHO NA ESTANTE”, em seu perfil no instagram: @johniere81

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O livro “O segredo da poesia”, de Jefferson Araújo, pode ser adquirido AQUI

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