Música por dentro e por fora

Por Hildeberto Barbosa Filho (*)

A música, antes de tudo, dizia Verlaine. Poesia, palavra com música, afirmava Sartre, ou essa estranha hesitação entre som e sentido, assegurava Valéry. Se existe, portanto, um predicado indispensável à dicção poética, à estrutura fluida do poema, este se consubstancia no ritmo, na cadência, nos silêncios e nas pausas que conferem sua inadiável musicalidade.

Creio que Fidélia Cassandra, poeta, compositora e cantora, germinada nos ares neblinados da Serra da Borborema, sabe isto como poucos. E o sabe por dentro e por fora, uma vez que a música e o canto se aliam visceralmente ao projeto poético que vem desenvolvendo ao longo da vida, e que, neste Antes de ser blues, ora publicado, materializa-se em sólida dimensão.

Se se formula uma partitura musical em âmbito temático, sobretudo nos poemas que evocam as vozes inconfundíveis de uma Bessie Smith, de uma Nina Simone e de uma Billie Holiday, entre outras, esta mesma partitura musical conforma o compasso interior dos vocábulos e dos versos no organismo dos textos.

As correspondências entre conteúdo e forma, entre ideia e linguagem, entre conceito e expressão como que distendem a textura dos versos, quer ao apelo da sintaxe discursiva, exemplificada especialmente no poema sobre Billie Holiday (“A meia-noite pede um blues grave-agudo destroçado com gatos cavilosos – porque -/ antes de ser blues é veludo áspero: Billie Holiday”), quer na experiência ótica e vertical do texto “Sassy”, assim armado na página em branco:

 

Sarah

voa

voa

e

vira

Jazz.

 

A imagem do “veludo áspero” parece resumir a entonação que se busca na manufatura dos poemas. A negritude das vozes ecoando na negritude das noites, solfejadas pela fria solidão do desespero existencial, habita cada partícula silábica de cada palavra. E a voz, que se insinua, pela carne viva de cada poema, estabelece a medida exata da evocação poética.

Somente uma autora, com fortes e intensas ligações com a música norte-americana e também com certas expressões líricas de sua herança poética (com certeza, uma Emily Dickinson, uma Elizabeth Bishop, uma Marianne Moore, uma Sylvia Plath, por exemplo), poderia lograr resultados estéticos deste tipo.

Assim, vale, aqui, o conúbio feliz entre música e poesia, poesia e música, que me parece ter marcado luminosamente a trajetória lírica de Fidélia Cassandra. Nas letras ou nos poemas, vê-se, sem esforço, a convergência jubilosa destas duas categorias da criação artística.

A geografia temática de Antes de ser blues, não obstante o registro indispensável de sua clave musical, alarga-se na contemplação de outros motivos que também respondem pela história singular da poesia desta expressão campinense.

O lirismo amoroso, sensual e erótico, aqui é retomado em timbre mais econômico e dentro de uma melodia verbal, ainda tateante, diria, em seus três títulos anteriores: Amora (2002), Plumagem (2008) e Melikraton (2013). Um exemplo só já diz muito dessa fluidez expressiva, concatenada no limite rigoroso da síntese. Veja-se o poema “Águas”:

 

Entre coxas

folias de girassóis

sépalas e pétalas

úmidasúmidasúmidas

ora abertas

ora unidas

por ânsias

por açúcares

por sais

nas folhas acima

orvalho morno

orvalho morno.

 

Ao lado deste viés lírico e sensual, convive a enunciação existencial e melancólica a refletir sobre os temas permanentes, a vida, a solidão, a morte. Ainda nesta esfera, Fidélia Cassandra parece se exigir um labor pelo mínimo, pelo recolhimento da palavra, dando vazão à possibilidade mágica de captar a “metafísica instantânea” das coisas, dos fenômenos e das ocorrências. Poemas como “Abandono I”, “Trilogia da morte”, “Bilhete”, “Fragmentos” e, sobretudo, “Pérola”, legítima pedra de toque convertida num dístico iluminado, senão vejamos:

 

Responder à dor

com beleza

 

ilustram a contento as minhas observações.

Absolutamente integrada aos sortilégios da experiência artística, e como artista da voz e da palavra, Fidélia Cassandra, com este Antes de ser blues, não somente cultiva a continuidade e o zelo do seu ofício poético, mas traz um realce particular, um refinamento específico, uma delicadeza, ao mesmo tempo terna e melancólica, à pequena, porém seleta, tradição lírica das vozes femininas na Paraíba.

Tanto é assim que nomes qualificados da poesia paraibana, a exemplo de Sérgio de Castro Pinto, Edmundo Gaudêncio e Astier Basílio, já chancelaram o seu desempenho, ratificando seus méritos.

x.x.x

Hildeberto Barbosa Filho, poeta e crítico literário paraibano. Nasceu em 09 de outubro de 1954, na cidade de Aroeiras. Bacharelou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal da Paraíba; tem curso de Licenciatura em Letras Clássicas e Vernáculas (UFPB); Especialização em Direito Penal, pela USP e Mestrado em Literatura Brasileira, pela UFPB, com dissertação intitulada “Sanhauá: poesia e modernidade”. Membro da Academia Paraibana de Letras, é autor de dezenas de livros na área da crítica e da poesia. Destaque para “São teus esses boleros”, “A comarca das pedras”, “O exílio dos dias” e “Ofertório dos bens naturais”, todos de poesia.

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