Os ditos do Quiçá

Por Gonzaga Rodrigues

Não sei onde estava que não mereci o convívio literário de um leitor e escritor de tantas afinidades, morando tão perto das minhas moradas espirituais e, aqui e ali, liberando franquezas que seriam minhas se não fora a timidez. Um exemplo: minha resistência ao best-seller, que não chega a ser incomum entre os impaludados das velhas letras. E como sobro ouvindo coisas das quais não faço a menor ideia. Outra, a minha dificuldade em ler a aclamadíssima Clarice Lispector, escrevendo para o mundo mas “vivendo em sua redoma”, como bem vê Cony num texto em que vem à luz Maura Lopes Cançado, cuja obra é vista por Ferreira Gullar como “um dos mais contundentes depoimentos humanos já escritos no Brasil”. Escritora que o cronista Lacet descobre para mim e investe fortuna para incorporá-la à sua biblioteca.

Tudo isso abrindo ao acaso “Os ditos do Quiçá” do doutor juiz Adhailton Lacet Porto, editado pela Arribaçã com as artes de Linaldo Guedes e Lenilson Oliveira.

Há uma singularidade nesse livro de província. A temática, os personagens são tratados de um ponto de vista aberto a todos os pontos de vista. Sai da Praça da Pedra e não encabula em qualquer outra praça, em qualquer mão ou lugar fazendo-se de casa.

É o que bem alcança o narrador. Em que pesem o talento, o humor próprio, não se consegue anular fronteiras desse gênero sem uma grande e profunda experiência de humanidade adquirida na literatura. Talvez mais do que na história. História por dentro como a de 1812 do fiat de Tolstoi ou a de Canudos pela têmpera de Euclides. Hermance Gomes Pereira, prefaciando, dá seu testemunho:

Vem desse sólido sedimento, sem dúvida, a simplicidade adquirida a muito custo, sobretudo num praticante do Direito, preso ao bordão da leitura e do despacho.

Não é o primeiro narrador bem sucedido saído da província cultural do Cine São Pedro, apertada pelo cruzamento das duas ruas principais e das lembranças mais contrastantes do nosso Varadouro. Ruas de tudo, do comércio variado e histórico, da passagem do féretro, de um cinema que o vento levou, da música em surdina e também do apito de fábrica que nos ligava à potência dos Matarazzo. Veio daí, nos anos 30, o grande Osias Gomes, tratadista do direito, romancista e ensaísta de estilo terso e de fortes convicções religiosas e filosóficas. Depois, bem depois, vem um cronista que aprendeu a escrever com Eça de Queiroz, Luiz Ferreira, tão exigente que negou a si mesmo e à história local da crônica a antologia cobrada, tantas vezes ensaiada e não levada a termo.

O doutor Lacet não sabe o bem que me fez, recolhendo em livro o que não pude acompanhar no jornal diário. Essa recolha me tirou da hesitação de juntar o novo com o velho numa coletânea que jurara não repetir, preso ao meu lugar, que não é mais o de hoje, o casario quase inteiro esvaziado. Para quem não teve outro sonho, o livro, sem dúvida, é a alternativa. Como a velha colher, invocada por Umberto Eco quando perguntaram a ele se o livro ia acabar: “A colher acabou?”

Gonzaga Rodrigues é escritor e membro da APL. O texto acima foi publicado no jornal A União, edição de 4 de novembro de 2020

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