SOLHA E EU

Por João Batista de Brito

 

Lendo e relendo a grandiosa e empolgante “Autob/i/ografia” de W. J. Solha (Arribaçã, 2023), me reporto mnemonicamente à nossa relação de amizade, que – puxa vida! – já vai pra mais de quarenta anos.

Início dos anos oitenta, conhecer Solha pessoalmente já foi uma experiência e tanto. Recebera recado de Sérgio de Castro Pinto, dizendo que ele queria um contato comigo. Marcamos e fui à agência do Banco do Brasil Centro, onde ele trabalhava. Desci ao subsolo e adentrei uma enorme sala, cheia de birôs e funcionários atarefados. Num deles, rodeado de papéis e números, lá estava aquele galego alto e vistoso, com jeito de gringo. Ao me ver, largou os papéis e me estendeu sua mão branca e larga, com um sorriso de franca alegria.

Num passe de mágica, o compenetrado bancário transformou-se num fanático por literatura, e o nosso papo girou todo em torno de Shakespeare. Com dissertação de mestrado na UFPB, eu lecionava literatura inglesa no curso de Letras.  Sem formação acadêmica, Solha me falava do bardo como se fosse amigo íntimo de seus personagens.

Na época, eu sabia pouco sobre aquele bancário de vocação artística. Só que fora o produtor do problemático filme de Linduarte Noronha “O salário da morte”, que eu vira e não gostara.  Não recordo se no nosso primeiro encontro no Banco, ou depois, Solha me passou um exemplar do seu inquietante “A verdadeira história de Jesus”. Depois, com atraso, me chegaram “Israel Rêmora” e “A canga”, e mais tarde, o ousado “José Américo foi princeso no trono da monarquia” e, aos poucos fui preenchendo minhas lacunas sobre esse escritor e artista inquieto, extremamente criativo, prolífico, envolvente, apaixonado e apaixonante.

E nunca mais perdemos contato. Evidentemente, um ponto comum entre nós dois foi sempre Shakespeare. O autor de Hamlet era tópico da disciplina que eu ministrava no curso de Letras na universidade. E, Solha, todo mundo sabe, é um shakespeariano de coração. Ninguém precisa de provas: basta ver o estupendo painel com os personagens do teatro do bardo, que ele pintou e está exposto no hall da Reitoria da UFPB.

Quando, em 1995, defendi tese de doutorado sobre a poética de Sérgio de Castro Pinto, para minha surpresa e orgulho, ele se fez presente na ocasião da defesa. Mais tarde, citaria esse trabalho (que virou livro) várias vezes em seus escritos, inclusive nesta “Autob/i/ografia”. Ao publicar “Imagens amadas” (São Paulo: Ateliê Ed, 1995) tirei-o de casa (tarefa difícil) para fazer a apresentação do livro, nas dependências do belo Hotel Globo, 1995, ano do centenário do cinema. Em 1998, num evento da Universidade sobre imaginário e literatura tive a honra de vê-lo performatizar, diante de uma plateia atenta e surpresa, dois dos meus mini-contos, mais tarde constantes do livro “Um beijo é só um beijo”.

Artista múltiplo, intenso, inesgotável, avassalador, não tenho condição de citar todas as atividades de Solha, mas li/vi tudo e amei. Por exemplo, a encenação de sua peça “A bátalha de OL contra o gigante Ferr”, espetáculo impactante a que, impressionado, assisti no palco do Paulo Pontes.

Acho que a última vez que vi Solha em público foi na homenagem aos seus setenta anos, promoção da Funesc. Um senhor grisalho, mas com o vigor e a desenvoltura de sempre. Tempos depois, o veria na tela do cinema, como o protagonista de “O som ao redor”, filme de Kleber Mendonça que resenhei no livro da Abraccine sobre os cem melhores filmes brasileiros de todos os tempos.

Se há pontos que não temos em comum isso diria respeito às minhas limitações. Mexo com literatura e cinema, e só, e já acho muito, ao passo que Solha, como todos sabemos, faz praticamente tudo que um grande artista pode fazer: literatura (ficção e poesia), teatro (autor, diretor ou ator), artes plásticas, escultura, cinema (roteirista, ator) composição musical, e algo mais que pode estar escapando.

Estou sempre atento a suas geniais iniciativas, e cheguei a ser objeto de uma delas, quando ele resolveu homenagear paraibanos de destaque, e, generosamente, me incluiu na sua coleção de pinturas, chamada de “Pense Grande”, hoje exposta no hall da Biblioteca Central da Universidade.

Para o Correio das Artes, escrevi sobre os seus livros “Trigal com corvos” e “O relato de Prócula”, dois itens de peso na sua obra de poeta e ficcionista. Na verdade, acho que escrevi mais sobre Solha do que lembro. No projeto do Governo do Estado “Literatura na Paraíba” fui escolhido para apresentá-lo, o que fiz a partir de uma longa entrevista que ele me dera, ainda na década de noventa, para um outro projeto que não vingara. E o ensaio se chamou “Solha: um artista cósmico”.

A parte nossa amizade e contatos, devo mencionar o seu encantamento com a Paraíba, e sua crença quase inabalável em nossos valores. Esse paulista de Sorocaba que, por causa de um concurso do BB e uma palavra numa canção popular, caiu de paraquedas no sertão paraibano, ainda hoje se mostra um deslumbrado com o que fazemos. Seu tópico no Facebook “Por que não paro de me surpreender com a Paraíba” parece nunca ter fim…

Aliás, Solha é assíduo no Facebook, e portanto, o leitor de sua “Autob/i/ografia” provavelmente já conhece muitos dos fatos de sua vida e de seu trabalho. O que em nada prejudica a leitura desse livro magnífico, com a providencial sacada de não ter sido escrito em ordem cronológica. A “desordem” dos fatos, imagens e conceitos cria um efeito de simultaneidade, como se Solha, o homem, fosse irredutível à ideia de tempo e espaço. E acho que é mesmo.

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