10 considerações sobre “Nenhum espelho reflete seu rosto”, de Rosângela Vieira Rocha

O Blog Listas Literárias leu Nenhum Espelho Reflete seu Rosto, de Rosângela Vieira Rocha publicado pela editora arribaçã; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:

1 – Antes de mais nada, preciso dizer que Nenhum espelho reflete seu rosto reforça uma tese pessoal de que podemos encontrar ótimas obras fora dos mecanismos tradicionais de publicação, no caso as principais editoras. Mais do que isso, esse livro, como alguns lidos aqui no blog levantam o debate sobre como algumas narrativas, às vezes até destituídas de uma matéria mais próxima dos dramas e angústias “reais” conseguem encaixar-se em tais mecanismos que possuem seu potencial de conferir “status” enquanto outras narrativas, a despeito não só de suas respectivas proximidades com “a vida”, mas também de aparentes qualidades literárias e técnicas acabam sendo publicadas ou de formas independentes ou por pequenas editoras. Todavia, este é um debate para outros momentos, importa-nos agora tratar deste romance de interessantes relevos e de personagens de certo vigor;

2 – É uma obra, que a seu modo, poderíamos dizer narrada em dois tempos, em duas tramas que todavia integram uma coisa só. Helen, uma joalheira às vistas do lançamento de uma coleção autoral de joias, convive com os dilemas e funções de sua atividade enquanto por e-mail narra a história central que de alguma maneira é uma outra história dentro da história (até por que não seria errado dizer que se apresentados só a coletânea de e-mails isoladamente, ter-se-ia uma trama constituída) em que rememora um relacionamento abusivo com Ivan, uma argentino que adentra a vida de Helen provocando verdadeiros furacões psicológicos;

3 –  E a protagonista rememora tal experiência sendo “provocada” por um contato a despeito de novas vítimas desse Don Juan vampiresco, que em vez de sangue, alimenta-se da saúde mental (e de algum dinheiro também) de suas conquistas. Com isso, quero dizer que a narrativa envereda-se a um drama cada vez mais presente com mulheres de meia idade, o que tem sido chamado em termos policiais e jurídicos de estelionato sentimental, estelionato afetivo, embora não seja bem esse o caminho e a reflexão da protagonista que parte para outra tese quanto ao comportamento execrável de Ivan, um caminho que todavia não poderemos negligenciar as características da narração em primeira pessoa;

4 – Aliás, até agora dissemos que o romance vislumbra a discussão de um problema concreto e um tanto disseminado em nosso presente, a autora o faz com boa técnica e grande domínio dos estilos literários, construindo sua narrativa por meio de uma linguagem interessante e de domínio sobre a escrita, como o esgarçamento das fronteiras entre o discurso direto e indireto e a forma como ela deixa-se tomar pelas outras vozes enquanto recurso estético de sua obra. Aliás, recursos esses demarcados também nas distintas formas que meio que dividem a narrativa em duas constituintes;

5 – Tais recursos estéticos dão ao livro a aura literária da trama narrada e ajudam também a contrabalancear a lentidão natural das histórias que compõe sua obra, pois que numa delas, o conflito mesmo que sombreado pelos fantasmas de Ivan, é basicamente a preparação do lançamento sua coleção de joias, momento em que teremos certa imersão no universo da ouriversaria, e a segunda trama, a que rememora em e-mails dirigidos sua relação com Ivan, por si só demanda lentidão como forma de por os acontecimentos numa lógica que lhe auxilie a compreender os fatos;

6 – E aí talvez um dos méritos literários da narrativa, pois as conclusões de Helen acabam sendo um tanto foscas, natural para quem viveu uma experiência emocionalmente traumática. Embora a narradora-protagonista delineia explicações acerca de Ivan e sua conduta, enquanto leitores temos a sensação de ela registra ainda marcas da incompreensão plena na procura de explicações que se não relativizam, quem sabe atenuam o comportamento do homem partindo para uma tese mais médica que policial;

7 – Na verdade, Helen escorará sua tese de entendimento sobre Ivan na psicologia e ressaltando de certa forma a culpabilidade na espécie mais visceral de narcisismo enquanto relativiza ou mesmo talvez nem leve em consideração a relação simples de ter apenas sofrido o golpe por um cafajeste que vive justamente de aplicar golpes em mulheres inseguras e solitárias. O crime, nesse sentido, aos olhos da narradora [mas não aos olhos dos leitores] é quase invisível, enquanto, certamente num reforço da eficiência do ataque psicológico, a narradora de algum modo busca alguma inocência no canalha ao imputar-lhe uma doença psicológica. Nesse aspecto, ao apresentar-se assim, em contradições, temos mais alguns pontos à obra;

8 – Até porque a narrativa literária constrói-se por contradições, pelo menos as boas narrativas. E este romance apresenta algumas, como a própria protagonista e a visão pessoal de si, aqui adentrando as pequenas nuances políticas que surgem, como quando Helen insinua ter um perfil à esquerda, uma verdadeira contradição ao seu próprio discurso, especialmente seu discurso em tempo presente, como fortes pensamentos liberais, tão em voga atualmente;

9 – É que se por um lado há a insinuação à esquerda, por outro temos o fato de que somada ao drama essencial do romance, embora não centrais, mas num aspecto paralelo mas bastante visível, teremos o discurso liberal ressaltado pela voz de uma empresária queixosa com o sistema que lhe sobrecarrega, tornando impossível empreender, e por aí vai de modo que as questões econômicas surgem aqui e acolá;

10 – Enfim, Nenhum espelho reflete seu rosto em suas adições e contradições é narrativa de vigor e de qualidades literárias elevadas. Na verdade é um romance de sustância e proximidade com os dramas do agora, que faz dela um trabalho relevante, e não só isso, que nos traz uma linguagem e um estilo bastante qualificado.

 

:: + na arribaçã ::

 

Deixe uma resposta