Daniel Sampaio e a poiesis em tempos de pobreza

Conheço Daniel Sampaio desde a primeira década dos anos 2.000. Com amigos em comum, nos tornamos amigos também e cheguei a publicar seus poemas no Correio das Artes, suplemento que editei por cerca de seis anos. Sabe quando a gente tem certeza de que daquela semente vai surgir uma árvore imponente e frondosa? Foi o que senti quando li seus primeiros poemas e conversei com ele informalmente pela primeira vez. Daniel não faz o tipo daquele poeta tímido que chega perto dos mais velhos morrendo de medo de abrir a boca ou falar de poesia. Não! Uma das coisas que me impressionaram em Daniel Sampaio desde o início foi sua personalidade forte, sua coragem de expor sua opinião, isso sem ser arrogante ou sem desrespeitar os mais velhos, os que vieram antes dele ao campo minado da poesia.

Falando de poesia, a de Daniel me apareceu como a de todos (ou quase todos) que estão se iniciando. Com a “descarada” influência de suas referências literárias iniciais, que, no caso de Daniel, era a poesia concreta, a poesia de vanguarda. Nada de novo sob o front, diria um meu olhar crítico. Mas o certo é que temo dois olhos, e o outro olhar teimava em dizer que algo novo estaria por vir daquele estuário poético. E veio!

Anos depois, Daniel me procura e voltamos a conversar sobre poesia, agora pela internet. Envia-me uns poemas como saldo de seus vinte anos de “prática consciente da linguagem”, como me falou. E reconhecendo que alguns com bons resultados, outros nem tanto. Pois bem, os poemas chegam-me às mãos com um título que depois seria alterado para este “Poetas em tempos de pobreza”. Antes de falar especificamente do livro, devo dizer que ninguém está imune a qualquer tipo de influência nesse mundo literário. Todos temos nosso Paideuma, não é? O que diferencia uns dos outros é que alguns viram apenas epígonos de suas referências. Outros, não! Outros tomam conhecimento do que leram, assumem uma influência ou outra, mas partem para suas escolhas, para seus próprios caminhos, não se importando com o trânsito que vai pegar na estrada. Daniel está neste último caso.

Agora, falemos do livro.

Pensamos no título desse volume de poemas como algo simbólico. Falar de beleza em tempos de pobreza?, provocaria Pound, numa das epígrafes do livro. Mas de que pobreza, de que beleza estamos falando? Para início de conversa, lembremos de Aristóteles e sua tese de que está na Poesia a melhor expressão do Belo, pois ela é “poiesis” (criação). É disso que falamos! Da beleza que está presente na poeisis de Daniel Sampaio neste volume de poemas. Desde o início, quando fala querer do amor diamante, tal qual dinamite. Vejam, aqui, a dicotomia que se instala em sua poética: o que precisa ser lapidado para tornar-se diamante, ao passo de explodir feito dinamite. E essa explosão torna-se possível nos versos do poema seguinte – o amor em dobras – provocando o sentimento na vanguarda poética que teme olhar uma flor pra não perder a pose:

 

no espaço a que nós dois nos damos

as mãos que o espanto desperta um corredor

em dobras a dar-se a si seus contornos de dedos o elidir

de sua forma a sua mais prevista como se concha

a fechar-se à pérola que lhe cabe em linhas-lâminas a eliminar-se as frestas de suas próprias dobras

 

O que dizer do sutil erotismo de “Evoé!”, ou o mais que explícito “Cabíria”, um dos poemas mais bonitos que li partindo das novas gerações, numa gostosa mistura sonora de Caetano Veloso com Fellini com Daniel?

 

a noite sarra a barra de tua saia

a vida são sempre mambos & mambos pra putas & putas

(menos tu)

e se fosse pra sofrer, deixa a gueixa

andar pierrô

 

A poesia de Daniel Sampaio tem ritmo, coisa que considero fundamental. Poesia sem ritmo não envolve o leitor e escrevemos para alguém ler, não é verdade? Lembro de uma historinha agora: um poeta da província pediu ao editor do jornal para publicar um poema seu nas páginas do periódico, com o argumento de que o poema era tão maravilhoso que só ele (o poeta) e Deus o entendia. Depois, retornou ao editor pedindo para não publicar mais, porque nem ele estava entendendo, quanto mais Deus. Ou seja: o poema era tão hermético, que nem o autor conseguia traduzi-lo. A poesia de Daniel vai na contramão dessa arrogância. Tem ritmo, leveza, cadência. É o Belo de que falava Aristóteles se impondo nas páginas desse livro, como em versos como os do poema “Van Gogh”.

Mas por que poesia em tempos de pobreza? Penso que aqui Daniel sai do idealismo aristotélico para a realidade catastrófica desse século XXI. Realidade que traz os abutres a comer a memória do corpo, os medos do efeito Werther, a música morfina dos mortos na homenagem a Goethe e seu indecifrável Fausto, no voo de precipícios da mulher que acorda…

A poesia de Daniel paga tributo ao Concretismo e a outros ismos de vanguardas, não apenas como referência, mas também como “reconstrução” poética, como aquela antropofagia de que falava Oswald de Andrade, devorando a influência central em nome de algo maior, que há de ser sempre a própria identidade, suas marcas digitais. Digitais que vêm, em Daniel, com outras referências, como Goethe, que vejo no belíssimo “Para um anjo”:

 

Tocam teus dedos comovente acorde,

que emula ao ressoar tuas manhãs

vermelhas. Tuas asas – o recorte

de nuvens enfronhadas pelas danças –

balançam sutilmente no teu doce

Alaúde. Que música louçã

escutas? Que Celeste timbre entoas?

Acaso Deus consagra o coração?

Vejo que agora voas! Um anjo (és?)

tão pequeno que me assombra tamanha

Beleza, cujo assomo faz do reles

humano, húmus. Lembras tu do estanco

que fui, que sou? Se não, vê tu: talvez

não te espante meu canto neste pântano…

 

Ah, quer, enfim, entender porque poetas em tempos de pobreza? Leiam “Coveiros e caveiras”, com a sombra de Augusto dos Anjos batendo nos versos:

 

Mórbido, eu sei, o título, mas não

leve a mal, meu leitor. São tempos mortos,

repletos de cadáveres, fedor,

Podridão, torpor, bílis e caixão.

 

Ademais, o soneto, um alento vão

dessa mísera condição do autor,

nada poderá contra este estertor

que é a morte alheia da solidão.

 

Mas não deixa de ser soneto e título.

Um chiste, xingamento em meio a covas,

Mortuários, monturos – um crás pio

 

do carcará que pega, mata e come.

Um ir assim ao fim, o autor, ligeiro,

Vermífugo entre caveira e coveiro.

 

Que a redenção venha da poética de Daniel! Sim, ela sempre vem da poesia”

 

Linaldo Guedes

Editor

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– O livro “Poetas em tempo de pobreza & outros poemas”, de Daniel Sampaio de Azevedo, pode ser adquirido no site da Arribaçã no seguinte link: http://www.arribacaeditora.com.br/poetas-em-tempo-de-pobreza-outros-poemas/

 

– A obra pode ser adquirida, também, no formato digital, em e-book, no site da Amazon.

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