NA ESTANTE: Haicais, minimalismos, porta’habilidade na imensidão do caís em que espero

Por Johniere Alves Ribeiro

 

O caís é uma ecologia múltipla. Gosto disto. São mil, os caís. Palavra que já declara sua pluralidade sígnica.

No fora de nós há milhares de caís, isto é certo. Todavia, dentro de cada um de nós os caís pululam.

Por isso, vejo o caís com uma topografia que exclui decalques. De modo que não há como seguir rastros, que porventura conduzam a outros rastros, não só porque o caís desemboca seu encontro direto no mar, direto no rio. Mas por ser compreendido aqui como uma cartografia, não como um mero mapa. Entendo o caís como uma espacialidade complexa alicerçada em sobreposições de signos, compromissados com o ritmo fabril da linguagem. Há no caís acebolamentos semiotizantes, que o constitui como uma ambiência demarcada pela heterogeneidade.

Entrada por cima das águas, modulada, muitas vezes, por estacas fincadas da borda ao fundo, o caís é um local: de urgências, de trocas, do partir, do regressar, da solidão, do estar junto, do carregar, do descarregar… Pena não ter agora uma palavra de terceira via, que rompa com esses elementos dicotômicos. De modo que pudesse ofertar ao caís um terceiro, outra via. Porém, creio que posso amenizar essas polaridades com a ideia de que o caís é alquímico e pode recompor –  noutros movimentos –  todas essas dicotomias. É certo que tal alquimia, inquilina proeminente do caís, tem em si o poder de negar uma composição única, invencionada em commodities linkadas a  homogeneidades.

Em paralelo, a água segue junto ao caís, aos caminhos que convergem entre si. E daí é que emergem a alquimia: do caís;  das navegações; dos destinos; das comunicações; dos interditos; … de tudo que dali faz emergir as temporalidades de um acebolamento amalgamado e que se convencionou chamar de processo civilizador da existência humana.

Presentificada no caís, a alquimia simboliza agenciamentos, nela: 1) trânsito; 2) plataforma; 23) porto; 67) barcas e navios; 100) atracadouro; 110) armazéns; 205) píeres; 456) pescadores; 575) tripulações completas; 674) mercadorias; 723) pedras; 967) ancoradouros; 1001) embarcadouro… Tudo hibridizado.

“No caís em que espero” (Arribaçã Editora, 2022), primeiro livro de Félix de Araújo Filho, coaduna em versos todos esses aspectos. Atrai para o construto dos haicais os extratos imagéticos acima assinalados. O livro é dividido em oito capítulos, seguindo a composição daqueles poemas curtos de origem orientais. Os haicais têm com fundamentos três versos, com métrica de 5, 7 e 5 que marcam respectivamente a estrutura do poema que contém apenas uma estrofe. Mais do que em outras modalidades poemáticas, o poeta precisa ter apuramento no poder de síntese. Araújo Filho abre o seu livro com a primeira parte nomeada de “No caís em que espero” título da obra:

 

Assim, o mundo é

estranha porta entreaberta

ao corvo ao canário.

 

Esperar em um caís é estar diante de uma “estranha porta”, que se parece sempre “entreaberta”, mas sempre porta. Indicação do ir e vir. Intermediada por ela, o poeta nos oferta a chave ambígua de uma passagem que não há, ainda que em um caís. Talvez isso se dê pelo o que “evém” sem vir, mas em um devir composicional em ritornelo, segundo pensam Deleuze Guattari. Uma locução que força a energia da espera. Ou compreender esta “estranha porta” levando em conta o axioma de  Nietzsche, no que diz respeito a ideia do eterno retorno. Entendê-la na possibilidade que cada pessoa experimentará novamente na vida, como consequência da diminuição da energia do universo, que em sua dinâmica, bem como periodicidade das confluências que esse mesmo universo pode causar. Isso porque, de alguma forma, o caís é o modelo da condição trágica do que é ser o humano, visto que a existência deste humano é repleta de dor, de sofrimento, de liberdade e de aprisionamento. Para Nietzsche tudo isso poderia emergir de forma cíclica, o seria um veredito catastrófico.

Diante desta hipótese, para o filósofo alemão, é necessário emitir uma clara separação entre a vida composta de fracassos e a vida experienciada na intensidade e na grandiloquência. E que, de alguma forma, mereça realmente ser vivida. Com esse postulado, torna-se inexorável que o humano treine a ponderação no tocante a sua ética interna e seu modus operandi ante a vida.

Dessa forma, a estranha porta no caís em que espero não há escancaramentos. Oferta apenas brechas, que sinalizam zonas de fugas em restrição, em meio a imensidão do mundo. Nesse haicai, transcrito acima, ainda percebo a mistura de uma dicção da poética de Drummond como goles rápidos de Augusto dos Anjos, formando uma espécie de antítese no uso das palavras “corvo” e “canário”.

Assim, sob o “espectro do corvo” o tom melancólico, a dor do peso do mundo, da interdição do homem ante o próprio mundo, sua máquina e engrenagens, tornam-se mistérios de acinzentamentos. Formando filetes que remetem às realidades vivenciadas pelos moribundos em sua agonia, malhada no desespero da solidão de quem é condenado pelo júri incauto da espera, que nos fixa, nos aprisiona e nos recolhe a vital capacidade humana do ir.

Em contraposição ao corvo, ave de mau-agouro para o senso comum, o poeta evoca ainda a imagem do canário. A mesma imprime  uma conotação de positividade. Seu canto harmonioso, canoro e eufórico alegra quem está por perto em sua audição.

Além disso, o canário é aquele que sobrevive e, mesmo aprisionado, forja para si alqueires de ar onde planta a liberdade. O canário conflui, no construto do poema, a metáfora daquele que guarda no esperar a paciência, mal-estar fulcral do sonhador.

Portanto, o canário é o aguilhão psicofísico que nos cerra, tal qual as estacas que ambiguamente seguram âncoras. Contudo, conflui para si o anseio do partir, do escapar ou do simples lançar-se à deriva. Daí a acepção da semiótica do caís abrir várias falanges que ora ligam ora desligam os haicais que constituem a escrita vérsica de Félix Araújo Filho neste primeiro livro de poema:

 

No caís em que espero

ancoram almas e velas

mudas de distâncias.

 

Araújo Filho diz muito com pouco. E esta parece uma marca indelével do poeta.

Também é certo que, na composição da escrita artística, é o poema o gênero que mais exige o crivo de síntese do seu produtor. Visto que o poeta na estrofe, no verso há “pouco espaço” disponível para se dizer algo, principalmente quando tomarmos por base a narratologia do romance, do conto ou da novela. Mas,  a linguagem exige do poeta alto nível de significação como paga tributo seja ao signo seja ao significante ou ao dois. Mesmo que para isso o poeta transponha o estribo das estruturas de sustentação ligadas à própria linguagem. Assim, o poema é o “pouco dizer” agenciado no ínterim não só do linguístico, mas para além dele. E é ali, no além,  que o poeta pesca sua profundidade. É o que nos apresenta os haicais de Félix Araújo Filho:

 

IV

Que fazes tu noutros

braços, se só nestes meus

sabes o que dói?

 

VIII

Veneno noturno

uma serenata ao nada

Alucinação.

 

XV

Dizem… Há um céu

onde nuvens gritam, gozam,

chovem abraçadas

 

Impressiona a maneira como o poeta crava seus versos na carne da alma. Eles tematizam o amor impossibilitado, o amor traído, o amor correspondido, bem como todas as formas presentes nos amores impulsionam a dor, recorrente no livro de um modo geral. Ou como as noites em claro nos lança para tomar “venenos” improváveis e ainda neles sorver algum tipo de sabor. Extrair das serenetas não só o som, mas por meio das melodias reter quaisquer modalidades de alucinação, pela adrenalina de navegar a beira do abismo e enxergar a sombra deste abismo sorrindo para si.

Daí o soltar erguer as canções para o “nada”, que também compõe os registros das nossas interfaces humanificadas nas afecções do desejo, “ passagem aberta / para o seio das acácias: / colheita de versos” ( LX). Desejo que é a presentificação, via de uma cotidianidade comum as “nuvens” do céu, nos quais os olhos estão vendo a normalidade, sem nenhum tipo de revelação. Mas há no poema XV, um céu que grita, um céu com nuvens que “gozam” e que por si “chovem abraçadas” como quem chora, em uma pulsão de lágrimas e de transe. Surrealismo em versos. Ao passo que tudo pode apenas passar de um ouvi dizer.

O traço fabricacional de Félix Araújo Filho em “No caís em que espero” exige dele uma navalha apurada no corte, tal qual a dos “Peaky Blinders”, daquelas navalhas que usam no fecho da boina. Pequena, mas sempre pronta na sua função de ataque, do corte. Navalha discreta, escondida na dobradura do haicai. Haicai lâmina/boina/escrevente do poeta:

 

LXIII

O abutre gigante

sobrevoa o seu repasto

domada ignorância

 

LXV

Luminoso sonhar

por não ver a terra entregue

ao tosco opressor

 

LXVII

Convicção de cobra,

sem ouvir e sem sentir ,

é sórdido o bote.

 

Ou ainda:

 

LXVIII

A ciência das armas

resplende na escuridão

toda escuridade

 

LXIX

Quanto perigo

pelas ruas destes tempo:

há um livro à solta

 

LXVI

No braço da árvore,

um vozeiro de chamas

amazônicas

 

Na boina/lâmina do poeta cortes, dobras formam esquinas para quem ler. Pelas quais valem pouco se guiar por mapas os decalques, pois o que o se faz em voga é a própria curva. O virar de esquinas sob o espelho d’água é a própria linha arqueada do caís. Parece um oxímoro o que digo. Enxergar na planície as quinas embutidas nos haicais de Félix Araújo. Já que “ o passo andarilho / segue a trilha transgressora / entre o abismo e o verso”.

A lâmina e a boina  que subscrevem os haicais de Félix na espera do caís múltiplo, do caís mil, do caís plural invencionam a carne viva em corte sutil. Mesmo que a boina imprima certo tom de elegância para o vestir composicional do livro. Porém, nós mesmo também inventamos nossos cais, como uma forma de recompor nossa soteriologia e, daí, erguer a nós mesmos: a salvação.  Salvação, da qual não sabemos de quê ou de quem.

“No cais em que espero” me remeteu aos versos musicais, os de Milton Nascimento e de Ronaldo Bastos:

 

“Para quem quer se soltar

Invento o cais

Invento mais que a solidão me dá

[…]

Invento o amor

E sei a dor de encontrar

[…]

Invento em mim o sonhador”

 

Nos haicais de Félix de Araújo Filho minimalismo, porta’habilidade na imensidão do cais no qual todos estamos a esperar. Até porque –  “em um mundo cada vez mais materialista (…) a literatura parece uma fortaleza contra a barbárie” já nos dizia Antoine Compagnon (2010, p.26). Pois como próprio Félix Araújo Filho indica: “ livros são soldados”. Daí o DE OLHO NA ESTANTE fez questão de ler e de indicar “No cais em que espero”.

 

* Johniere Alves Ribeiro é professor-doutor e resenhista parceiro da Arribaçã. O texto acima foi publicado na seção “DE OLHO NA ESTANTE”, em seu perfil no instagram: @johniere81

 

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 O livro “No cais em que espero”, de Félix Araújo Filho, pode ser adquirido no site da Arribaçã clicando AQUI

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