Leitura durante a quarentena: “O coração pensa constantemente”

Por Mário Baggio

O luto: tomar consciência dele, confrontá-lo, negá-lo a princípio, aceitá-lo depois, vivê-lo e, finalmente, vê-lo encolhido e quieto num canto da memória. É disso que “O coração pensa constantemente” trata, na escrita sempre emocionada da autora mineira radicada em Brasília, que já ofereceu a seus leitores, entre outras obras, “Nenhum espelho reflete seu rosto” (Arribaçã, 2019), romance sobre outro tema de suma importância: o abuso, tendo como motor o relacionamento tóxico entre uma mulher e um narcisista dissimulado.

Em “O coração pensa constantemente” há, além do luto e dos sentimentos que o cercam, o acerto de contas de Luísa, a narradora (a própria autora), com seu passado e principalmente com sua irmã mais velha, a artista plástica Rubi, morta depois de uma longa e grave enfermidade, repleta de sofrimento. Uma mulher decidida, de temperamento forte, que suscitava a mais profunda admiração na irmã caçula. É um romance sobre o amor entre duas irmãs que se admiravam de maneira quase incondicional.

“O coração pensa constantemente” (Arribaçã, 2020), de Rosângela Vieira Rocha

Os capítulos são curtos e cada um deles dá conta de um acontecimento específico na vida das duas, seja a eleição da Embaixadora do Turismo, seja o casamento de Rubi, seja uma ceia de Natal que, num acesso de raiva, foi borrifada com inseticida pelo pai, seja o footing na praça da igreja, seja a mágoa silenciosa de Rubi por não se ver reconhecida como artista por seus pares e pelo público. Há capítulos em que a narradora chega aos tempos atuais, falando sobre a pandemia e seu confinamento, ocasião em que conversa diretamente com a irmã morta como se estivessem frente a frente.

Revoltada com a iminência da morte, Rubi questiona a existência, num dos capítulos mais intensos do livro: “Então era isso? Só isso? Nada mais que isso? Essa coisa tola, banal, mixuruca, trabalhosa e cansativa? Que coisa, nunca pensei que fosse só isso. É muito pouco diante de tudo que se fez, tanta canseira, tantos sonhos e ilusões.”

A própria autora questiona se sua obra vale a pena ser escrita: “Mas escrever sobre uma irmã morta e fazer com que entendam, ainda que de maneira sumária e incompleta, o vínculo que nos unia e a forma como foi forjado, representa um grande risco.”

Em que pese a admiração que tem pela irmã mais velha, a autora não deixa de mencionar suas contradições, suas fraquezas, sua ingratidão, sua revolta pela doença que a acometera e que a levava cada dia mais para perto da morte. Rubi era um ser humano e os seres humanos têm dessas coisas, quem disse que não?

Se não me falha a memória, foi o escritor moçambicano José Eduardo Agualusa quem disse mais ou menos isso: “O bom livro não acaba, continua na cabeça do leitor mesmo depois de finalizada a leitura.” É uma boa frase para falar sobre “O coração pensa constantemente”, que certamente ficará na minha cabeça por bastante tempo.

Nestes tempos bicudos, espetados e cheios de arestas, é reconfortante ler uma obra como “O coração pensa constantemente”, a mostrar que a ternura ainda é possível. Que o livro encontre seus leitores.

 

(Mário Baggio é escritor. O texto acima foi publicado em sua página no Facebook em fevereiro de 2021)

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