MADALENAS DESARREPENDIDAS (por um feminismo humanista)

Por Krishnamurti Góes dos Anjos

A obra “Madalenas desarrependidas” da escritora Angela Zanirato é obra que decorre do I Concurso Literário Arribacã – Poesia, promovido pela Editora Arribaçã em 2020. A Editora ao conceder tal prêmio em nossa tão desprestigiada (pelos próprios brasileiros), literatura nacional, para além de revelar um talento inconteste, vem dar o seu contributo para a divulgação cada vez maior da literatura contemporânea, razão pela qual merecem seus idealizadores e editores, nosso mais caloroso aplauso.

“Madalenas desarrependidas” é obra realmente instigante, a começar pelo título que evoca aquela figura bíblica de Madalena, e nos faz refletir no ditado popular de “cara de Madalena arrependida”, que traduz a expressão usada para referir aquela pessoa que cometeu falta grave e sabe disso, dai fica com aquela cara. Voltemos, todavia, para as escrituras. Como sabemos, Madalena é personagem que desperta as mais variadas questões de fé no interior do pensamento cristão. Muita gente inclusive, cresceu ouvindo que Maria Madalena foi uma prostituta – muito embora não haja nenhuma menção real da prostituição no texto bíblico –, que encontrou Jesus Cristo e, arrependida de seus pecados, pediu perdão e passou a segui-lo de forma fiel. Tudo indica todavia, que a pecha de puta atribuída a Madalena, tenha se cristalizado ao longo do tempo, por interesses ‘outros’ que incluíam o fato de que sempre foi conveniente utilizar confusas sugestões sobre Maria Madalena (e também outras mulheres bíblicas), para ajudar a manter as mulheres fora do clero.

A senhora Zanirato lança mão do nome da figura bíblica talvez porque simbolize uma mulher que caminhou entre os tênues limites da salvação e do pecado é verdade, mas também sacia questões de nosso tempo no qual as mulheres ganham outro lugar na sociedade e a autoridade clerical já não é mais a mesma. Poderíamos esperar nessa linha de pensamento uma poesia pautada em um feminismo panfletário e descabelado? Não é o que acontece. E o leitor fica bem a par disto já nas orelhas da obra, em texto assinado por Mayda Zanirato, no qual afirma que a poesia da autora é “forte, se embrenha a fundo e sem medo no mundo dos oprimidos, dos excluídos, das vítimas da solidão e do abandono e da injustiça. Retrata a violência de toda ordem, quer seja ela física, moral ou social e, em especial, foca no machismo onde, não raro, se fazem presentes todas as outras formas de violência.

O livro se abre com nota sobre a premiação da autora, e refere à um parecer sobre a premiação feita pelo poeta e escritor André Ricardo Aguiar, que tece considerações sobre a poética da autora. A certa altura escreve ele: “Como disse Ezra Pound sobre literatura, e usando o caso específico do poema, como linguagem carregada de significado até o grau máximo possível, esta obra alia uma temática que expande uma percepção sobre a vida feminina, e em sucessivas camadas, atinge o cerne de uma violência sobre o mundo, seus efeitos e contrastes.”

Até aqui creio que já se percebe o porque dos parêntesis que estão no título deste texto: (por um feminismo humanista). Adiante com exemplos. No poema “Preste atenção menina:” – p. 55 – uma estrofe traduz esse estado de coisas que estamos a viver no mundo no que diz respeito à busca de um sentido para o amor, aquele amor decorrente do encontro entre homens e mulheres. Ficamos profundamente angustiados a nos perguntar afinal em qual “momento nossas rotas foram desviadas”, para esse despautério de relações em que afundamos a cada dia? “eu escrevo para vocês minhas irmãs do mundo / mulheres alteradas / que sonham a liberdade que eu também sonho / pra você que rói os ossos do adão e sente-se satisfeita / o próprio adão já roeu a sua carne as suas ideias ideais seu sexo a / sua identidade”. E, mais adiante, já na página 59 – o poema “Grafite” se fecha com: “– eu sempre soube: a dor é coletiva.” Observe-se o nível de consciência de nossa miséria…

Embora fale abertamente sobre o sofrimento, a autora encontra em sua criatividade poética espaço para versejar uma tragicomédia amparada inclusive nas escrituras.  O poema “Salomé pós-Magdala”, nos faz lembrar de outra figura bíblica, a Salomé, aquela alucinada que, segundo as escrituras oficiais, foi filha de Herodes Filipe e criada na corte do tio, Herodes Antipas. No Novo Testamento ela é apontada como responsável pela execução de João Batista que teve sua cabeça decepada e servida como souvenir em uma bandeja: depois de advertir que “o amor é como um veneno que dá e tira a vida”, a conclusão atualizada para os nossos dias pós-modernos e desvairados: “hoje às vinte horas Salomé fará uma live / enquanto João fará selfies / e o pequeno Herodes joga brothers in arms 3.”

O que dizer de um poema como este?

“Até a foda mudou” – p. 46.

“nos anos oitenta / os uniformes escolares eram bonitos / a gente transava ao som de beatles / encostados ao muro e encaixados / éramos a contracultura!

hoje estamos despedaçados / fodemos ao som de dois pra lá / dois pra cá / mais tarde de pijamas / cada um em sua cama / estamos desencontrados.”

 

Mas a autora não está mesmo para brincadeirinhas e trocadilhos, a força poética que ela deflagra em vários poemas é vigorosa, exatamente aquilo que escreveu Ivy Menon em texto de prefácio, e que “causa-nos uma terrível sensação de estar a contemplar a humanidade em carne-viva.” Vivemos em plena vigência de um capitalismo ultraliberal que sequestra o espaço da experiência e o horizonte de expectativas, reduzindo tudo a um presente perpétuo que, se por um lado causa um desejo de consumo ilimitado, por outro determina a exaustão a tal ponto que não se pode sentir outra coisa a não ser um profundo mal-estar. Por várias razões. Vivemos a tensão entre a intuição da presença da satisfação consumista ao alcance da mão e a realidade de seu afastamento e inacessibilidade, o que determina a situação da consciência social contemporânea. É a desgraça do capitalismo de consumo no qual o “eu” procura eliminar os laços e sentimentos, que vão a cada dia reduzindo-se a valor de troca, induzindo à pressa, constrangendo à rapidez, acentuando a superficialidade nos vínculos. Óbvio que assim seja porque sentimentos exigem a duração para se desenvolverem, a aceleração do tempo produz cada vez mais a pobreza interior. Outros exemplos:

 

“Esse poema é um out/door” – p. 29.

“sob o poema dormem doentes / rios de lama / marianas / bailes funk / balas perdidas / ninho do urubu / ágatas / 80 tiros na música / meninas vestem rosa / meninos vestem azul / óleo nas praias / porte de armas / vírus / bactérias / sangue / pus

sob o poema dormem capachos / verde-amarelo / bandeiras / continências / histerias / coturnos / salmão / caviar / romanée conti grand cru

sob o poema desfile de dândis / dentes de porcelana / partos agendados / apliques platinados / longas unha de gel / bolsa Prada / iphone 5S / propaganda de margarina / buquê de flores artificiais

sob o poema reaças vociferam / não há revolução / não há pandemia / o messias renasceu / o mito oh mito! / omite

sob o poema / a lavagem de porcos de fraque e cartola / sob o poema / discurso encerrado / protesto em branco.”

 

Poema “Kamikazes” – p. 44.

“recolhe as asas vermelhas e os barcos imaginários / recolhe a louca vontade de viver / há um pre-apocalipse no ar / tudo está sob controle remoto / estamos interditos sob um céu cinza chumbo / a paz fulminada / lamento, não há pombas brancas nas praças / os pássaros estão silentes / perfilados para o ataque / voos kamikazes / explodem liberdades / viver é uma manobra de guerra.”

 

Poema “As novas configurações do voo” – p. 52.

“ainda há pássaros / mas não há voos / as rotas estão proibidas / pela nova inquisição

eu vi asas caídas pelo caminho / anjos mortos / na tentativa de travessia

o céu está tão feio / de dar pena / o não chegar / é o novo ninho / do não lugar.”

 

Poema “Guernica” – p. 53.

“identidades perdidas / desconfiguração atômica / malditas bombas do cotidiano que entortam meus versos e / rasuram a rosa recém aberta / mal/ditos varais onde expomos nossas feridas / e nos calam / e nos cegam / e nos ensurdecem / a mulher do meu tempo é uma guernica / cubista / decomposta / mulheres quebra cabeças / mulheres hematomas / mulheres decodificadas / que saltam alto dos parapeitos / e tropeçam nas próprias feridas / abertas ao nascer do dia.”

 

“A mulher do meu tempo é uma guernica”… O que pensar de uma coisa assim? Que vergonha sentimos de sermos humanos ao ler uma coisa dessas!? É então que voltamos o pensamento para aquilo que em sua medida nos faz lembrar de Deus. Voltemos às escrituras salientando que os evangelhos, conforme conhecemos hoje, não foram estabelecidos como cânone até o quarto século, de forma que um texto que teria sido encontrado no século IV, no Egito, narra episódios da vida de Jesus contados por uma mulher de nome Maria de Mágdala e foi traduzido como “O Evangelho de Maria Madalena”, tornando-se parte dos evangelhos fundadores do cristianismo. A obra da senhora Angela traz inclusive, à guisa de epígrafe, um pequeno excerto desses Evangelhos Apócrifos). E paralelamente, a palavra “Madalena” significa “torre” em aramaico. Em termos simbólicos, a torre é um lugar privilegiado, do qual se pode ter uma visão mais ampla das coisas. Assim se afigura este “Madalenas desarrependidas”. Um olhar dilatado sobre a “geografia desumana”, que foca em nossos reais problemas (de homens e mulheres), que busca compreender porque “camisas de força abraçam” o humano que anda tão dividido. Desprezo dos dominantes por um lado, e humilhação dos excluídos do luxo e da abundância, de outro, resultam em apatia e hiperatividade – ambos sintomas de excessos e frustrações. E a patologia que cerca nossos dias busca preencher tanto vazio existencial com esportes radicais, obesidade mórbida ou anorexia, terrorismo, guerrilhas sociais, bala a torto e a direito etc. e etc…. Um bando de lunáticos em uma agitação permanente. Expressão clara de empobrecimento psíquico sem precedentes porque em um meio desses, perde-se, claro, o sentido da vida, de onde deriva também a depreciação dos valores éticos e morais. Um mundo no qual só se leva em conta a lei do valor, que não estimula a fraternidade, a amizade e a compaixão não pode jamais ser humano. É isto, dentre tantas outras coisas, que as “Madalenas desaarrependidas” da senhora Angela Zanirato vêm nos berrar bem na face. Entretanto, sempre se pode divisar a luz no fim do túnel que está desde sempre a nos esperar. Querem saber qual?

 

Poema: “Rosa da resistência” – p. 67.

“planto uma rosa vermelha / que resista à maçã da bruxa / deixada na calçada / planto uma rosa vermelha / que resista à clorofila dos cabelos platinados / que floresça no cano das botas / estoure a boca do fuzil / planto uma rosa vermelha / que vá para a luta / armada de seiva / que não esqueça seus motivos / assim como a roda viva não esquece sua engenharia / planto uma rosa vermelha / e que o jardineiro jamais seja acusado / de decepar as próprias mãos na poda / rosa vermelha / que enfeite celas / peito de prostitutas / bancos de sangue / de sêmen / acampamentos / e feiras da lua / planto uma rosa vermelha / e não me preocupo com o ângulo / da fotografia / só com sua rota / de colisão com os fascistas / planto uma rosa vermelha à prova de balas / de tropas de elite / de canhões / uma rosa chumbo liberta / onde as mãos que a busquem / pela ânsia do encontro / nunca estejam satisfeitas.”

 

Um registro final (que já nos alongamos demais). Prêmio literário não significa chancela definitiva, mas compele o autor que tenha suficiente vigor para continuar produzindo – porque ninguém se engane, Literatura é sacerdócio de labor extremamente árduo – pelo que desejamos ler novas produções de uma autora que em seu livro de estreia demonstra talento e sensibilidade incomuns, e por isto mesmo, extremamente necessários.

 

Livro: “Madalenas desarrependidas” – Poesia de Angela Zanirato – 1ª edição – Editora Arribaçã – Cajazeiras -PB, 2020, 112 p. – ISBN:  978-65-5854-084-7

 

Krishnamurti Góes dos Anjos é escritor e crítico literário. Texto publicado em sua página no Facebook em 13 de janeiro de 2021)

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