Poetas em tempo de pobreza & outros poemas, de Daniel Sampaio de Azevedo

Por Amador Ribeiro Neto

 

Conheci Daniel Sampaio na sala de aula de Letras da UFPB num dos meus cursos de Teoria da Poesia. Logo se destacou pelo seu vivo interesse na disciplina e pelo talento em ler e analisar poemas. Tornou-se um interlocutor singular dentro e fora da sala de aula.

No início as discussões eram acerca de textos da própria bibliografia do curso, mas não tardou para que evoluísse para outros afins, até que a interlocução chegou ao que mais almeja um professor: a troca mútua de livros. Rapidamente Daniel avançara em seu próprio desenvolvimento intelectual e me trazia sugestões de leitura. Na mescla de informações teóricas com sua sensibilidade poética, logo começou a ensaiar seus primeiros poemas. Fui o feliz leitor da gênese de sua poesia.

Trocamos muitas e demoradas impressões sobre este delicado ato criativo que se iniciava. Ele, então na flor da idade, já manifestava o desejo de publicar um livro. Eu, maduro e ranzinza, me propus a  conter o impulso do poeta então com 19 anos. Conversei com ele, mas me lembro que certa vez veio me contar que enviara os poemas a ninguém menos que Augusto de Campos, pedindo-lhe a avaliação.

Daniel, sempre honesto e transparente, traços que admiro em sua personalidade, também me contara que o poeta lhe fora gentil, mas alegara que era idoso, tinha  a mão pesada, e o aconselhava a procurar poetas de sua geração.   Daniel abandonou a precoce ideia de lançamento do livro, pôs-se a ler e estudar mais poesia, bem como a escrevê-la e reescrevê-la seguidamente. Anos e anos depois o livro – este! –  fica pronto. E com rara qualidade. Um livro de estreia que anuncia poeta feito. Vejamos.

Nas orelhas de Poetas em tempo de pobreza & outros poemas (Ed. Arribaçã, 2022) o poeta e crítico literário Lau Siqueira assinala: “A poesia de Daniel é perturbadora. Não se submete ao cerco temático. Também não algema o conteúdo  na forma”. Brilhante e contundente observação que recorta o núcleo da poesia de Daniel: o que diz vem atrelado ao modo de dizê-lo com tal fluidez e leveza que não há como não se render a tanta beleza.

O editor Linaldo Guedes no Prefácio,  entre exclamações, mostra-se maravilhado.

Pode-se afirmar, com toda segurança, que a poesia de Daniel Sampaio habita a casa do mais “ostinato rigore”. Dos poetas da nova geração é notavelmente dos poucos que toma a linguagem pelo cerne. Mergulha em sua essência. A palavra para ele é, com vigor, a gênese da poesia. Por isso não tergiversa.

Não foi condescendente com o modismo dos estudos culturais que fizeram tanto barulho décadas atrás e agora esmorecem na linha do horizonte. Da mesma forma, não faz concessão ao top da hora – o tão paparicado identitarismo. Não se curva para nenhuma moda. Sabe seguramente o que quer.

Seu material de trabalho é A poesia. Para ele, lição aprendida com Pound, poesia é linguagem carregada de significado em alto grau. O mais é fricote passageiro, festa modesta, efêmera, nefasta, funesta.

Sua forte poesia parte da palavra, dá-se na palavra e a partir da palavra, estabelece um intertexto outros códigos.

Em recente live pelo Instagram, promovida por sua editora, ele  pôde discorrer sobre vários códigos artísticos com grande desembaraço deixando seus leitores mais instruídos para lerem sua obra. Com uma amplitude maior de repertório para poder usufruir melhor de sua poesia. Boa poesia é aquela que acrescenta ao leitor, que provoca sua inteligência e suas emoções. A de Daniel faz isto com os pés nas costas.

Cinema, pintura, músicas popular e erudita, fotografia, teatro, escultura, dança HQ’s, com desenvoltura surgem em suas conversas, seja na citada live ou numa entrevista, sempre com espontaneidade, para situar melhor sua poesia.

Um leque de  experiências se abre interagindo músicas experimentais de Anton Webern e John Cage, populares da Tropicália ao rock de The Doors,  das recentes exposições de artes plásticas de  Adriana Varejão e Lenora de Barros, que ele visitou, passando pelos filmes de Glauber Rocha, Godard, Lars von Thiers, Spielber, Kleber Mendonça Filho, ou o teatro de Becket, Zé Celso Martinez, Coletivo de Teatro Alfenim, a dança de Pina Bausch, Debora Colker, a poesia de Khlénikov, Celan, Cabral, Augusto de Campos, Delmo Montenegro, Frederico Barbosa tantos outros de tantos códigos diversos.

“Poetas em tempo de pobreza & outros poemas”, dividido em 3 cabalísticas partes, pela opção tripartite já lembra ao leitor a unidade, o equilíbrio. Este cuidado é um dos vetores que conduz a estrutura de todo o volume.

Cada uma das três partes contém 7 poemas – também remete ao célebre número cabalístico d a ideia de infinito – o seguido por dois longos poemas finais, um dos quais intitula o volume. O número dois universalmente simboliza a união e traz de volta a ideia de equilíbrio, espelhando a própria estrutura do livro, pensada significativamente pelo poeta.

As três primeiras partes, intituladas “Estudos” Nº 1, Nº2 e Nº3, são formadas por poemas curtos. Às vezes sonetos petrarquianos, ora sonetos shakespearianos. Ora duetos, ora tercetos. Ora poemas de versos livres,  ora poemas à moda provençal. Ora,  ao estilo da poesia concreta (ser sem ser poema concreto, frise-se). Tudo numa variedade que revela a versatilidade de formas e fazeres do poeta. Tudo para se chegar aos dois poemas mais extensos do volume. Um deles, “Terror sagrado sob o sol de meio-dia” já publicado sob a forma de plaquete (editora Mondrongo, 2019). O outro, que encerra o volume, “Poetas em tempo de pobreza”. Vamos a alguns poemas:

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HOMELESS

 

meu ninho. o teci-

do d’ avenida Epitácio. Fi-

o de para-choques.

Paralele-

Pí-

pe(ne)dos. pedaços de

papel e placas.

 

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O sem-teto tece o próprio abrigo com as sucatas, as pedras dos paralelepípedos, os pedaços de caixa de papelão e os a placas dos automóveis da avenida. Esta construção de seu abrigo se dá sonora, visual e semanticamente pelo uso de vocábulos fragmentados que não somente remetem aos pedaços dos objetos como descontroem sintaticamente os versos e arquitetam novos sentidos para o poema. O teci-/do d’a avenida transfigura-se em [eu] o teci d’avenida. Da mesma forma Fi-/o de para-choques é substantivo (o fio de parachoques) e é também verbo conjugado na primeira pessoa do pretérito (eu fi-o de para-choques).

Processo similar há em Paralele-/Pí/pe(ne)dos onde as pedras do paralelepípedo se mostram visualmente partidas como as  pedras  do penedo de onde vieram –   ou, talvez, como pedras que formam um penedo na avenida.

Visualmente as palavras desenham uma mancha gráfica que recorta o abrigo do sem-teto (homeless). O que o poema diz ganha mais significado e preenche-se de poeticidade ao ser conformado pela forma arquitetada pelo poeta. Esta cumplicidade interativa com a linguagem costura todo o livro de Daniel, poema a poema.

Em “Terror sagrado  sob  o sol de meio-dia”, na primeira das sete partes do poema, o poeta, num jogo bem trabalhado entre sons dos vocábulos, formado na quase totalidade, por termos mono ou dissílabos, vai sufocando o leitor à medida que o dragão consome o eu-lírico (o leitor) dia a dia.

Este percurso de asfixia é vivenciado, sonora e visualmente, através de versos que se desenvolvem sem pontuação, numa evolução naturalmente conduzida pelo movimento das imagens e das estrofes dispostas visualmente numa corrente visual que as imanta aos olhos e fôlego do leitor:

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1.

 

draga-me

o dragão

às grades

dos dias

agrilhoa-me

os braços

de rugas

e algodão

nenhum

grito

nenhum

sismo

a so

ga gór

dia à glo

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O  poema que encerra e dá nome ao livro, “Poetas em tempos de pobreza”, destaca, na epígrafe de Pound, que a beleza é difícil, preanunciando o que as sete partes seguintes trazem para o leitor. Seguramente o poema mais elaborado do volume. Aquele que toma a poesia, o poeta, a sociedade e o homem pobre como tema e forma para descontruir uma visão cristalizada da linguagem e do mundo. Uma caçada é empreendida logo de início e uma morte ocorre no desfecho, ainda que a caçada continue ao fim do poema, entre “sombra de misérias”.

Poema urbano, em seu núcleo desenha-se a coluna de limites porosos, fluindo as partes que o antecedem e procedem, num movimento de retroalimentação semântica e formal de mútua beleza:

 

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4.

 

o verme

lho do sema

foro é

dia

rio da vio

leniencia

dos car

ros.

nas cor

rentes das

ruas

em se

ries se

exibem

pelas ja

nelas

cerradas.

[o pobre]

[o miseravel].

o ver

de bate de as

salto.

ate o

prox

imo

epis

sadico.

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Uma vez mais o poeta tira partido da desconstrução vocabular para permear o poema de inusuais sentidos. “O verme lho do sema foro” não esconde o  verme do semáforo, que depois faz “sema” ou seja, sentido, na relação  dos outros personagens que vão surgir.  O  “dia rio” que é diário da violência/leniência nas cores, e é rio nas correntes em séries, rio corrente de asfalto da avenida, mas riocorrente de Joyce, se exibindo pelas janelas cerradas (dos carros) em que o verde bate de assalto / o verde debate de assalto do pobre, do miserável ante o próximo episódio sádico. Ver o verde, ver o debate e não debater como convém aos que passam dentro dos carros e deixam o homeless do outro lado da janela.

A forma do semáforo como verme espelha psicologicamente os passageiros dos carros de vidros fechados, temendo a possível violência dos pobres e miseráveis  atrás das janelas fechadas num próximo episódio sádico, em série, como nas séries dos streamings, como nas novelas. A classe média é ironizada em seus totens de consumo e uso diário. O poema tece dura crítica social em apurado trabalho com a palavra e a visualidade gráfica na página, sem precisar recorrer a recursos extratexto. Lição de  linguagem densa e sublime.

Daniel Sampaio estreia com um livro maduro, que assegura seu lugar entre os poetas mais expressivos da poesia brasileira contemporânea. Na Paraíba, Poetas em tempo de pobreza é um dos lançamentos mais importantes e significativos dos  últimos dez anos.

 

* Amador Ribeiro Neto é poeta e crítico literário

 

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Poetas em tempo de pobreza & outros poemas pode ser adquirido no site da Arribaçã clicando AQUI

2 comentários em “Poetas em tempo de pobreza & outros poemas, de Daniel Sampaio de Azevedo

  1. Linda a resenha de Amador Ribeiro Neto. Parabéns! Instiga muito a curiosidade de ler o livro.
    Como faço para adquiri-lo? Não encontrei, no site da editora, seção de compra de livros. Ou, talvez, não tenha procurado direito rsrs
    Aproveito para dar os parabéns, também, aos editores Linaldo e Lenilson pelo belo e significativo trabalho editorial que vêm realizando em nosso estado. Forte abraço!

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