Rosângela Vieira Rocha – O coração pensa constantemente

Por Alexandre Kovacs

Rosângela Vieira Rocha – O coração pensa constantemente – Editora Arribaçã – 198 Páginas – Projeto gráfico e capa de Luiz Prates – Revisão de Ana Elisa Ribeiro – Lançamento: 2020.

 

O mais recente lançamento de Rosângela Vieira Rocha é um corajoso exercício de metaficção no qual ela trabalha a própria dor do luto pela irmã mais velha, Edna Vieira Rocha de Rezende, transformando-a em Rubi, personagem deste livro. Com uma narrativa delicada e lírica, Rosângela dá voz à narradora Luísa, que alterna o doloroso momento de perda com as memórias afetivas da infância e adolescência, para contar a história de um amor muito especial entre irmãs, uma relação que “não é imune a conflitos nem a rivalidades, mas consegue sair incólume das desavenças, por ser um vínculo feito de matéria incorruptível e perene”.

É importante notar que, apesar de o livro conter passagens autobiográficas, não se trata de uma biografia no sentido comum da palavra, mas sim de uma obra de ficção e não existe maior homenagem do que eternizar um ente querido por meio da literatura. O título do livro define muito bem o equilíbrio entre racional e sentimental, uma marca recorrente no estilo da autora, que sabe como costurar a narrativa, alternando os altos e baixos da vida de suas personagens. Uma característica marcante de Luísa ao longo do romance é sempre procurar entender e justificar as ações da irmã, nem sempre razoáveis devido à doença, sob a perspectiva do afeto.

“Pode parecer lúgubre, mórbido, mas recorrentemente imagino o estado de conservação do seu corpo, se continua íntegro ou se já começou a se decompor. Nesses momentos, sinto uma urgência difícil de ser controlada, uma ânsia de abrir o túmulo, destapar a urna e ver o que está ocorrendo. Que membros ainda estarão inteiros? E o rosto de traços expressivos, ainda intacto? Os braços, arroxeados depois de tantas agulhadas, terão mantido a cor? Os pés, os pobres pés gelados, que tantas vezes massageei durante suas internações, que aparência terão agora? Haverá vermes? Eles já chegaram, famintos, insaciáveis, à procura de sua carne? É estranho pensar nisso, eu sei, mas não tenho o controle total dos meus pensamentos, e essa angústia de querer saber é aniquiladora, não tem remédio. (Esses pensamentos parasitas são mais comuns do que parecem, mas ninguém fala sobre eles, por medo da crítica alheia).”

Com uma diferença de 10 anos, que se fazia notar mais na infância, Luísa aprendeu a observar a irmã mais velha com a admiração de uma menina, com quem se identificava ainda mais do que com a mãe biológica e, com o passar do tempo, os papéis foram se invertendo. A escritora Maria José Silveira destaca muito bem essa transformação no texto de apresentação do livro, Irmãs no mundo: “Rosângela exalta a ‘indissolubilidade’ desse vínculo, mas sabe bem acompanhar a evolução e transformação dos afetos nas diferentes fases de vida. A amada, admirada e perfeita irmã mais velha, modelo de vida, e seus laços com a irmã caçula, em tudo atenta e generosa, que vão se transformando até o desvendamento e a dor da incompreensão mútua.”

“Respiro fundo e respondo, pronunciando devagar as sílabas: Rubi, não estou escrevendo sobre a sua vida. Não sou a sua biógrafa e muito menos sua intérprete. Sou a sua irmã caçula, e quero contar como foi o nosso relacionamento, como é ainda, pois você está absolutamente viva e plena dentro de mim. Quero tentar esmiuçar o afeto que sentimos uma pela outra, é disso que quero falar. O meu tema são as irmãs, a riqueza do vínculo que as une, a sua proximidade, a identificação, a lealdade que existe entre elas. Uma história de amor fraterno, provavelmente um dos mais bonitos que existem, a base de todas as congregações, religiosas ou não. O pilar das comunidades, historicamente, é a fraternidade. Sem o amor ao próximo, perdemos por completo nossa humanidade.”

Como alerta Rosângela no início do romance: “cada luto é único e nenhuma perda se parece com a outra. De nada serve ter frequentado essa ‘escola’, pois não há aprendizagem e muito menos diplomas. Ninguém está preparado para a morte.” Realmente, uma das coisas mais terríveis na morte é este golpe inesperado que, repentinamente, faz com que deixemos tantas coisas inacabadas ou mal resolvidas. Em algumas passagens, o livro se transforma em uma espécie de longa carta, uma oportunidade de dizer coisas que não puderam ser ditas no tempo que as irmãs compartilharam. Como seria bom pensar: quem sabe algum dia juntas novamente.

“Eram carnavais muito familiares e ingênuos e não sei o motivo de nos vigiarem tão rigorosamente. O controle social exercido nas cidades pequenas é enorme. Todas as mães tomam conta das filhas de todos e os mexericos se reproduzem com rapidez espantosa. Pelo que sei, continua sendo assim. Os hábitos mudaram, mas nem tanto. Ninguém ousava beijar na boca quando via apontar lá longe o vulto da avó de uma amiga. Todas sentiam muito medo, mais das mães do que dos pais. A educação familiar era entregue às mulheres, praticamente. Os pais pagavam as contas, mas em sua maioria eram omissos, distantes, indiferentes, não se metiam em questões que julgassem de pouca monta. / Papai desaparecia nos dias de folia. Saía de casa muito bem arrumado, de terno de linho branco, perfumado com Suspiro de Granada ou Madeira do Oriente. Descia a rua muito pimpão e só voltava na quarta-feira de cinzas, amarrotado e sujo. […]”

Sobre a autora: Rosângela Vieira Rocha nasceu em Inhapim, MG, e mora Brasília. “O coração pensa” constantemente é seu sexto romance e 14º livro. Tem sete obras para adultos e sete infantojuvenis. Recebeu vários prêmios literários, entre os quais se destacam, o Prêmio Nacional de Literatura Editora UFMG – 1988, com o romance “Véspera de lua”, e a Bolsa Brasília de Produção Literária 2001, com a novela “Rio das Pedras”. Participou de diversas coletâneas de contos, entre as quais “Mais trinta mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira”. Em 2019 lançou, pela Arribaçã Editora, “Nenhum espelho reflete seu rosto”.

 

(Texto publicado em Mundo de K)

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