Carla Nepomuceno entrevista Adrienne Savazoni | Café com Português

Adrienne Savazoni: “Yuqueri é uma obra que mistura o épico e o lírico, conta a história do vale do Juqueri, enquanto ao mesmo tempo conta a minha relação com o lugar”

 

O «Café com Português» e a Palavra Comum – Revista Galega de Artes e Letras traz, nesta edição, uma entrevista com a professora, ambientalista, promotora cultural e poeta brasileira Adrienne Savazoni com motivo do recente lançamento do livro Yuqueri, Arribaça Editora, 2023.

Carla Nepomuceno

 

Quem é Adrienne Savazoni?

Adrienne Savazoni é uma mulher de 41 anos, professora de Língua Portuguesa na rede pública de ensino, Mestre e Doutora em Estudos Literários pela Unesp Araraquara, ambientalista desde os 12 anos, educadora ambiental, promotora cultural, estudiosa da história do futebol brasileiro, de literatura e suas relações com as questões de gênero, poeta, cronista e ensaísta com diversas publicações acadêmicas e literárias. Além disso, sempre foi militante de esquerda nas mais variadas causas como educação, cultura, folclore, trabalho, renda, direitos humanos etc. Mas antes de tudo, vive dentro dela uma menina que viveu no Parque Estadual do Juqueri no meio do Cerrado, que conversava com as árvores, corria atrás de borboletas, se perdia em devaneios por suas estradas e trilhos e que sonhava que através da poesia mudaria o mundo.

 

A sua obra Yuqueri, Arribaça Editora, 2023, já está disponível nas livrarias brasileiras. O que a leitora/o leitor vai encontrar por detrás deste título sugestivo?

Yuqueri é uma obra que mistura o Épico e o Lírico, conta a história do vale do Juqueri, enquanto ao mesmo tempo conta a minha relação com o lugar. O vale do Juqueri abrigou o maior hospício da América Latina; o Juqueri chegou a ter 18 mil internos e 4 mil funcionários, mas não só isso, também foi um hospital importantíssimo para a evolução da Psiquiatria e da Psicanálise no mundo, já que, o médico fundador do hospital, Dr Franco da Rocha, era cientista e tinha contato com Freud, compartilhando com este diversas pesquisas inovadoras que havia iniciado no hospital. O hospital também fora pioneiro na arteterapia e na laboterapia. Mas o que o livro quer discutir não é a história do hospital propriamente, mas a relação mágica que tem sua palavra criadora oriunda do Tupi-Guarani, criadora de uma nova terra, enquanto a loucura ali parece permanentemente acesa. O que o livro propõe é visitar a história não pelos dados oficiais, mas pelas histórias de gente esquecida e marginalizada, silenciada, oprimida mas que fez daquela terra, seu esteio e o sentido de suas existências.

O livro também discute as transformações ambientais do lugar e a importância do bioma Cerrado e do Parque Estadual do Juqueri, enquanto conta a minha história de menina vivendo naquele ambiente.

Os livros nascem com uma missão. Qual é a missão de Yuqueri? Quais são os temas abordados no livro?

A missão de Yuqueri é discutir antes de tudo a palavra criadora, enquanto almeja um mundo novo em que a loucura, a inocência, a arte, a justiça social, a igualdade entre seres humanos e entre seres vivos e não vivos e a natureza sejam fontes de inspiração da criação de um novo mundo. Os temas abordados são: a degradação ambiental, a importância do Cerrado, a infância, a vida anticapitalista, a loucura e histórias de vidas silenciadas pela história oficial.

 

Como foi o processo de criação da obra, como é que a voz da poeta foi ganhando forma até ser captada em verso?

A criação da obra em si demorou 4 anos, embora há poemas mais antigos. Mas eu já pensara em fazer uma obra assim já um bom tempo, principalmente depois de ler Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles e Poemas do Chile de Gabriela Mistral.

 

De onde vem a sua paixão ou o encontro com a escrita?

Quando criança, minha mãe lia e contava histórias para eu dormir, antes mesmo de eu saber ler e escrever, eu já tinha contato com a poesia através da voz da minha mãe. E no porão de casa, havia uma biblioteca que fora do meu avô materno, um avô poeta o qual eu não conheci (morrera um ano antes de eu nascer) mas do qual eu sentia a presença em cada livro e em cada objeto dessa biblioteca. Da biblioteca dele e do contato com a voz da minha mãe, surgiu o meu gosto pela palavra poética, pela literatura e pelos livros.

 

O que é que te inspira mais para escrever, o dia, a noite…?

A noite e a madrugada com certeza me inspiram mais, mas para inspiração não tem hora, as vezes um texto dorme na minha cabeça dia e noite, amanhece comigo, fica -se doendo, matutando, vai comigo trabalhar e espera pacientemente o momento que vou colocá-lo para fora no caderno ou no computador.

 

Yuqueri exercita o jeito ancestral e indígena de ver o mundo. A sua poesia é uma viagem ou um novo olhar para recuperar vozes e pensamentos confiscados pela história?

Exatamente, fiz uma pesquisa antropológica e histórica sobre os povos indígenas daquela região, bem como sobre os primeiros colonizadores e descobri histórias silenciadas anteriores ao hospital e que fala muito sobre o que é aquela região. Dentre essas histórias está um feminicídio, uma mãe que abala a sociedade seiscentista paulista com sua fúria em defesa de um filho, uma escravidão indígena que teve uma grande rebelião que levou a morte de toda família do escravagista fazendeiro, além do incêndio de sua fazenda, um casal de imigrantes que fugiram da guerra e que aqui continuaram fugindo para manter-se unidos e vivos, mas principalmente para viverem plenamente o seu amor, enquanto tinham que lidar com todos os significados de morte, uma artista que dentro do Juqueri foi lobotomizada, que sofreu todo tipo de violência por ser mulher, mas que nunca conseguiram dominar a sua alma e tirar-lhe a sua arte. Além disso, o livro propõe uma outra relação do ser humano com a natureza, uma relação em que ele passa a se enxergar parte dela.

 

Quais são as suas paixões?

Minhas paixões são o Cerrado, a natureza, a literatura, a docência, o Corinthians, o futebol e claro, a minha filha Ana Cecília que é ilustradora dessa obra.

 

Qual é a sua opinião sobre a literatura produzida por mulheres no Brasil? Você acredita que chega a todo mundo? Observa diferenças com outros países?

A literatura produzida por mulheres no Brasil continua com muitas dificuldades, porque o Brasil é um país extremamente machista, que mais comete femicídio no mundo e que apresenta uma desigualdade de gênero muito superior a outros países da América Latina, há dados que ser uma menina no Brasil é muito pior do que ser menina em países mais pobres como Bolívia, Guatemala e outros países hispano-falantes. Daí que escrever seja visto como um território proibido para as mulheres em um país acostumado a matar as mulheres para silencia-las e a morte que falo aqui não é apenas a física. O livro retrata bem isso quando conta histórias como a de Inês, Beatriz ou de Aurora Cursino. Infelizmente, a escritora, a poeta ainda precisam lutar muito para serem reconhecidas e marcarem o seu espaço.

 

O que leva uma escritora a querer publicar, como é que se ultrapassa a modéstia para se mostrar abertamente aos leitores?

Bom, eu só quero publicar realmente quando percebo que o que estou escrevendo pode realmente fazer a diferença na vida de outras pessoas. Aquilo que eu não acho que vai ser interessante, eu prefiro deixar como rascunho.

 

Que conselhos daria aos que estão a iniciar no mundo da escrita?

Meu conselho é que não deixem de ler, mas leiam boa literatura, leiam os clássicos, leiam poetas marginais e marginalizados, leiam literatura! Ela é a melhor escola para o escritor! Porém, não jogue fora a sua vivência, a sua experiência de vida e tente beber também de outras artes e linguagens para se inspirar e criar.

 

Tem laços com a Galiza? Tem alguma influência de escritoras galegas na sua escrita?

A Galiza foi uma descoberta incrível para mim de um tempo para cá, não há como não ter relação com a Galiza quando você escreve em uma língua que lá nasceu, principalmente para mim, pois sempre busquei na minha escrita essa relação primeva com as coisas, comungar com as origens, com a fonte mágica da palavra falada e escrita. Mas foi de um tempo para cá que descobri o movimento reintegracionista e isso me fez repensar a história da língua portuguesa e o presente dela, sua força e até a história dela no Brasil. Descobri também que minha bisavó paterna que nasceu em Almeria na verdade tinha um avô que era galego, seu sobrenome era Mirás e eles eram de Corunha. Isso fez todo sentido para mim, porque essa minha bisavó era benzedeira e curava através da palavra e da sabedoria ancestral e feminina do uso das ervas, o que me traz toda relação das antigas civilizações celtas com a natureza que  ocuparam aquelas terras. A escritora galega que mais influenciou a minha escrita foi Rosália de Castro, a qual eu conheci primeiramente de uma pichação de parede, pois sempre prezei pela musicalidade em minha escrita e Rosália também influenciou outra poeta brasileira, da qual eu bebi muito que é Cecília Meireles. Aliás, eu acredito nessa relação feminina com o canto, com o murmúrio, com a musicalidade, com o ritmo pleno e vazio ao mesmo tempo que carregamos de séculos de silêncio, enquanto quando detínhamos a palavra era em sua força mágica e seu corpo santo. Há uma ciranda de mulheres poetas em torno dos mesmos ritmos, uma força ancestral que se transmite uma a outra como uma forma de resistência e poder que não se nomeia, mas que se reconhece, igual a se passar uma receita de chá ou de bolo, ou costurar um tecido! A palavra se presentifica e se transforma em mágica, vida e música.

 

Publicado em https://palavracomum.com/entrevista-com-adrienne-savazoni-carla-nepomuceno/

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O livro “Yuqueri”, de Adrienne Savazoni, pode ser adquirido AQUI

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