Ivy voa na literatura e reinventa a crônica, sem sair da terra

Por Linaldo Guedes

A escritora paranaense Ivy Menon é surpreendente. Conheci-a através da Lourença Lou. Passamos a nos seguir nas redes sociais e interagir através de nossos escritos. Minha primeira constatação foi de quanto a Ivy era carismática. Ela tem um jeito diferente de tratar seus amigos e seguidores em redes sociais, com açúcar e muito afeto. Sobretudo com muita educação, o que surpreende em tempos de beligerância verbal. Depois sou surpreendido novamente, agora com sua prosa forte, densa contida nesse “Asas de terra e sangue”, um misto de realidade crua com muito lirismo, muita poesia, apesar de escrito em tom de crônica. A obra é publicação da Arribaçã Editora, com uma capa de Ingrid Stephane perfeita para retratar a saga dos boias-frias pelos interiores paranaenses.

“Asas de terra e sangue” é uma obra autobiográfica, é verdade. Mas é muito mais que isso. Ivy transforma suas experiências de vida em literatura da mais alta qualidade, onde predominam a boa narrativa, estilo fluente, tom reflexivo, poesia nas entrelinhas e muita lição de vida, mesmo não sendo professoral. Encontrar bons cronistas nos tempos de hoje é tarefa cada vez mais difícil. Com o quase fim do jornalismo impresso, os cronistas sumiram. Todo mundo quer ser poeta, contista, romancista – há mais glamour nesses gêneros, pensam! Não! O glamour nunca estará no gênero, mas na capacidade inventiva e na qualidade do texto de quem escreve. Ivy é inventiva quando faz um livro de crônicas sem medo nenhum de pôr o dedo na ferida, nas dores das descobertas.

O leitor sai do livro de Ivy com a sensação de que não conhecia nada da vida, de como é possível construir poesia a partir das dores. É um livro para chorar em alguns momentos, embora não seja essa a intenção da autora. Mas um choro que beira à catarse que precisamos ter para nos renovar todos os dias.

Peguemos ao acaso algumas das crônicas do livro para falar sobre elas. Vejam como Ivy tece a “teoria da evolução na roça” com o ser poeta, com seu próprio nascimento. É coisa de quem não só sabe refletir sobre a vida como de quem tem domínio da linguagem para escrever bem sobre essa reflexão.

“Dos pés vermelhos de algodão” é uma crônica que fala do trabalho infantil escravo de forma tocante. Em “Picolé de geada” reminiscências sertanejas ao som de Cascatinha e Inhana, Tonico e Tinoco: “Há intensa comunhão na cantoria de pais e filhos nos dias frios em volta da fogueira”, diz a narradora.

“Eu amo tempestade” é uma bela homenagem ao pai, que bebia, era rude, mas rezava em latim. “Você tem sede de que”, uma reflexão sobre a importância da água; “O café da Dona Dirce” é lírica; “Chapei o coco de maracujá”, é divertida e trágica ao mesmo tempo; “Vale-tudo” mostra que “Não há romantismo na falta do que comer. E meritocracia não cabe em estômagos vazios”; “Eu sou o vampiroooooo!” traz de volta o medo do velho do saco, do vampiro; “Os acessos de Dozinho” as convulsões do irmão; “O vizinho Lobisomem” mostra que a vida é uma tristeza só, sem os mitos; “O milagre do porco” é muito bem construída enquanto narrativa.

Tem mais? Sim! “O resto sagrado” fala de crianças meio arvore, meio pássaro; “Da fome e das letras” lembra que “ainda que nossos cabelos cheirassem a sabão de soda; nossas mãos fossem grossas e as unhas sujas; ainda que o cansaço do dia nos exaurisse, nós tínhamos os livros”; “O mal” conta da tentativa de estupro quando criança; “Menon e Menonzinho” homenageia o irmão; “Cadê meu corpo” mostra que o povo da roça nascia sabendo do necessário; “Nossa Senhora de um cacho só” é descritiva ao abordar a primeira comunhão da irmã; “Tenho saudades de picolé de groselha” é tão lírica quanto a infância da gente; “Ícones e inutilidades” define: “ser escritora se tornou meu maior objeto de desejo. O pai decidiu que eu seria freira, fiquei apavorada”.

Precisa mais? Sim, que você leitor mergulhe nas páginas de “Asas de terra e sangue”. Garanto que não vai sair ileso.

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