Piquete Soledade, de Vamberto Spinelli Jr.

Por Amador Ribeiro Neto

 

PIQUETE SOLEDADE, de Vamberto Spinelli Jr. (Editora Arribaçã, 2022) brilha pela risca da concisão e do rigor. Cada palavra registra apenas o seu peso, sem um miligrama a mais de adiposidade. Tal precisão sublinha o volume de cabo a rabo e o ilumina com uma clareza que revela o quanto ele é leve, agradável, apaixonantemente gostoso de se ler. Ao mesmo tempo, cortante, pois não se furta a furar a realidade com lâmina afiada.

No entanto, não se iluda o leitor com o usual sentido que a  palavra piquete tem adquirido nos últimos tempos. Vamberto teve o cuidado de discriminar,  logo nas primeiras páginas, seus vários sentidos dicionarizados, bem como do termo soledade. O leitor lê o livro instruído e instrumentado pelas várias dimensões semânticas destes termos. Em tempo: é bem-vinda esta decisão do poeta, pois nunca é demais relembrar os  segredos dicionarizados que as  palavras guardam silenciosamente e dos quais acabamos nos descuidando ao  longo do tempo.

Como se não bastasse, no poema que abre o volume, o eu lírico deixa claro o propósito desta poesia: uma poesia que busca “ser em si”.  Pensando bem, isto não é pouco nesses tempos em que a poesia tem se esmerado em ser em ser expressão amplificada da emoção de seu autor ou de suas cartilhas ideológicas – panfletária, didática e prosaicamente.

“Ser em si” diz do “signo de” e não do “signo para”, nos lembra Décio Pignatari em uma de suas lições sobre poesia. Quer seja, “ser em si”, ou “signo de” é o  poeta preocupado com o código. É o signo voltado para si próprio, para a linguagem. É o poema voltado para a matéria de sua feitura, o código.

Já o “signo para” é o poema comentando a matéria de sua referência, aquilo que ele narra. É importante frisar que ambos os tipos de signo formam o poema e não se dissociam. Antes: mutuamente comentam-se. Em poesia usa-se a palavra isomorfia para dizer desta interação recíproca entre a linguagem (forma) e o tema (o fundo).

Detalhando. O “em si” não é um procedimento narcísico de uma linguagem oca que se move no umbigo de signos mortos. É um modo da linguagem que vivifica o “signo para”.

Exemplificando: nos versos de Vamberto, é um “tributo ao mundo”, uma “ponte-abismo / e único // poema seiva”. Na sua poesia o “em si” habita a sábia condensação pessoana do “sentir-pensar”.

Pode-se, então, concluir que o  eu-lírico de “Piquete soledade” é um amálgama de “o que em mim sente está pensando”, mais código e mensagem. É uma somatória de signo de e signo para. Uma  mescla de texto plurissêmico e plurivocálico.

Há vários sentidos nos vários significados e nas várias vozes que falam no texto estruturando uma espiral que organiza uma malha de camadas de prazer que o leitor vai usufruindo a cada volta de cada poema.

A descoberta brilha ao desdobrar dos poemas. O prazer em camadas agiliza a leitura dos poemas num vetor de engajamento social e arquitetura estética. A mão leve de Vamberto desenha rastros de luz no céu espacial do livro todo.

A sonoridade é outra camada que explode intensa na sua poesia.  Mais que o som das vogais e consoantes em interação, como é o usual, trata-se de uma massa de  musicalidade dos versos que se sobressai como um todo e não como partes separadas. Não o som uma vogal se destacando como um clarinete, ou de uma consoante como um trombone. Nada disso. Mas o som de toda uma orquestra em uníssono. Assim é a musicalidade do livro Piquete, como se invocasse a todos para uma grande marcha, ou manifestação, ou  dança, ou balé, melhor dizendo.

A música modula o conjunto do livro, do poema de abertura ao que o encerra. Atua como uma partitura única.  Ela se apresenta no recurso dos versos curtos, no espaçamento irregular das estrofes, no uso das caixas altas e das fontes itálicas, nos refrões, nas repetições,  nos enjambements, nas anáforas, nas onomatopeias, etc.

A musicalidade tinge “Piquete soledade” com um núcleo sígnico que reverbera o vozerio das manifestações populares e ecoa a melodia oriunda das ruas. O poeta capta as palavras de registro oral com facilidade e felicidade, sem desvinculá-las minimamente de um cuidado formal. Este gingado bem harmonizado entre a fala da rua e o registro escrito cuidadoso configuram sua poesia como uma partitura  que é também uma crônica social afetiva.

Poeta da parcimônia, sabe que “poema é pouca letra” para “para tanto papel”. Assim, podemos depreender que Vamberto Spinelli filia-se à estirpe valéryana de preferir “o magro do prato”, ou à cabralina de escrever com “as mesmas vinte palavras”. Quer seja: dizer o mais com menos.

Sabe desenredar-se das verborragias, das imprecisões semânticas e sintáticas. É poeta que chega ao poema com um saber limpo, construído por emoções isentas de sentimentalismos, de panfletagem, de didatismo, de concessões ao fácil. “Piquete soledade” é poesia que se lê com alegria verdadeira. Coração e mente gratificados.

Aos poemas:

 

SEM MÁSCARA DE AR

 

poema é sintoma

: vertigem na pele-palavra

: respiração cutânea quando a pele palavra

e também outras que são outras

feitas do mesmo sempre mesmo

gesto-gosto inflado, enfado.

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PANFLETO

 

poema é modalidade de combate

(bate)

quando interessa o estômago, intestino,

o enfarte

na mira o inimigo mercantil

nossa indústria:

homem-bomba poema

explosivo poema fuzil.

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QUEDAMOS

 

I.

deitado sinto

torto

do lado o lado

tosco

o outro o outro

poço

o que se cai no mesmo o

outro

(a borda se desloca sem escopo)

abrindo abrindo

fosso e fosso

II.

quedamos nós então aqui estamos

que  pernas

que  léguas

que suor que de tudo

transborda e logo fica oco

 

* Texto do poeta e crítico Amador Ribeiro Neto publicado no Correio das Artes, suplemento literário do jornal A União, de janeiro de 2023

 

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O livro “Piquete Soledade”, de Vamberto Spinelli Jr. pode ser adquirido no site da Arribaçã clicando AQUI

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